O conhecimento do mundo

Uma visão do 25 de Abril, no singular estilo sentencioso de Agustina

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Os aforismos tão do agrado de Agustina Bessa-Luís sucedem-se nesta crónica do 25 de Abril tal como visto a partir do Douro adriano miranda

A leitura da nova e cuidada edição do livro de Agustina sobre a Revolução de Abril e os dois anos “de cerco” que se lhe seguiram pode ajudar a ultrapassar uma antinomia que geralmente se impõe na interpretação de textos com valor literário. Refiro-me à simples oposição entre significados externos versus internos, pela qual se dividem os melhores críticos, assumindo por vezes posições extremadas.

De facto, para alguns, o que mais parece contar é a precisão objectiva dos que conseguem desmontar o sentido de um campo, com os seus agentes, discursos e acções, passíveis de ser interpretados a partir de fora; para outros, a literatura, a começar pela poesia, tem de ser lida como algo de mais específico, um saber só ao alcance dos iniciados e dos que intuitivamente têm olho para captar o significado interno dos textos. Sublinhar uma tal oposição implica deixar de fora a análise da intencionalidade dos que podem ser considerados grandes escritores, sobretudo quando estes conceberam as suas obras como um modo de conhecimento do mundo. Ora, não será o próprio alcance desse mesmo conhecimento — incluindo nele o envolvimento dos próprios autores numa luta infindável entre questões de forma e de conteúdo — que corresponde à grandeza dos escritores e das suas obras?

Recapitule-se a trama do livro. Uma série de famílias de proprietários do Douro serve de pano de fundo às acções e, sobretudo, à caracterização psicológica de um conjunto de personagens que viveram os anos de 1974 a 1976 de modo bem diverso. Por exemplo, Piedade Aureliano acabou “cansada de amigos e inimigos, tudo lhe parecia duma pavorosa mediocridade”. Josué, um jornalista e escritor estabelecido em Lisboa, frequentador do Grémio Literário desde antes de 1974, gostava de exibir as mulheres como troféus. Em 1976, quando contava quase 30 anos de idade, teve de se conformar com o fim da imaginação revolucionária: “Que ninguém discuta porque uns são poupados e outros castigados. Que ninguém discuta se uns vencem e outros perdem!” Por sua vez, Nor, grande putanheiro, acaba por se casar com Antónia, mulher independente e livre, de passaporte e livro de cheques na mão. Um desfecho que aponta não para um castigo daquele que sempre procurara nas mulheres obediência, mas para a sua submissão a um novo tipo de matriarca, destemida e desempoeirada — “a prostituta da nova grande Babilónia”.

Aos tipos psicológicos correspondem, quase sempre, tipos de famílias. Umas dadas à magistratura, outras ao comércio, a mandar os filhos estudar fora, etc. A insistência numa realidade social composta, sobretudo, por famílias revela bem uma realidade rural do Norte e do Douro. Só a pouco e pouco, já com meio livro percorrido, Agustina fez entrar em cena os interesses das classes. As suas considerações têm, então, valor de hipóteses sociológicas: que a classe média e as classes populares lutaram, durante a Revolução, mais pela satisfação de “regalias materiais” do que pela liberdade; e que era nas classes ricas que se encontrava uma “força potencial das esquerdas”, devido sobretudo a dissidências no seio familiar, mas também “porque o direitismo durara demais na soma das gerações”.

Descontando as considerações sobre a estrutura social e as suas bases familiares, os tipos de mulheres e de homens, que se multiplicam ao longo do livro, só competem com o número de aforismos, tão do agrado da autora de A Sibila. Tipos e máximas sucedem-se, de forma intermitente e quase simétrica. Ao retrato de uma personagem segue-se, quase sempre, uma multiplicação de sentenças, com um sentido de avaliação psicológica e de juízo moral e político. Talvez esteja, aqui, na referida mistura, o verdadeiro estilo de Agustina: tão psicológico quanto sentencioso. Para os que procuram sobretudo acção nos livros de ficção, uma tal forma de escrever leva ao desespero. Em muitas alturas, pode mesmo aborrecer. É que uma moral sentenciosa parece ir no sentido contrário das convenções cinematográficas da acção que invadiram a criação literária.

No entanto, o melhor de Agustina encontra-se nas passagens carregadas das tais máximas e sentenças. De um notório conservadorismo avesso às celebrações revolucionárias? Nem todas e, embora a maioria assim deva ser considerada, muitos são os juízos em que o leitor fica convencido da falta de preconceitos da escritora. Mais, ainda: em muitos dos casos, valores e tomadas de posição revelam sobretudo um enorme conhecimento do mundo, acerca do marcelismo, da revolução, da descolonização, do feminismo, etc.

Claro que a explícita alusão a obras, tais como as Mémoires d’outre tombe (1849-1850) de Chateaubriand ou L’Ancien Regime et la Révolution (1856) de Tocqueville, cria um quadro de referências avesso à Revolução, e mais concretamente à Revolução Francesa. Contudo, em ambos os casos o conservadorismo aristocrático dos dois escritores franceses surge associado ao carácter inevitável das mudanças ou ao bem fundado dos métodos por eles utilizados. Chateaubriand, por exemplo, no texto que serve de epígrafe ao livro, reconhecia que a imobilidade política era impossível de alcançar e que a mudança se impunha, acrescentando que a venerável memória dos vestígios dos nossos antepassados não implicava necessariamente que devêssemos ser retrógrados. E que dizer da ideia de que, em Portugal como no Ocidente, se deixaram de encontrar grandes homens? Não será esta mais uma reverberação do que Tocqueville dizia dos tempos democráticos, que seriam também os da formação de uma cultura de massas amorfa e de impossibilidade de um individualismo original?

Enfim, no quadro literário construído neste livro, quaisquer que sejam os juízos, máximas e sentenças proferidos, haverá o direito de os impor? Poderão eles constituir-se em argumentos de autoridade, a bem de uma suposta verdade? Agustina, com o seu cepticismo, pensa que não. Chega mesmo a considerar, a fechar o seu livro, que “a influência é sempre um rebaixamento do destino humano”. E acaba por concluir com uma nota de pessimismo — acerca da sua capacidade para influenciar com os seus conhecimentos os seus próprios leitores, mas de uma contenção exemplar para todos os que andam por aí inchados com as suas verdades —, citando Santo Agostinho: “Se quando eu morrer não tiver convencido ninguém, é porque a minha vida foi um êxito”. Ora, não será este um modo particular de Agustina revelar o seu enorme conhecimento do mundo?

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