O caminho de dentro

1. Papoilas a caminho de Avis, imagino que também a caminho de Jenin, a natureza não é tão diferente assim, só atravessá-la quando queremos. Por exemplo, neste primeiro sábado de Abril, que no calendário cristão calha ser de aleluia, sermos cinco num carro, três nacionalidades, a partir de Lisboa. Segundo o Plano A do Google, uma distância de 164 quilómetros que leva 1h53 a percorrer. Também calha ser exactamente essa a distância de Ramallah a Jenin no Plano A do Google, mas levando 2h53 a percorrer, e de uma forma que obriga a sair da Palestina para atravessar um longo pedaço de Israel. O Plano B leva 3h30, obrigando igualmente a atravessar um longo pedaço de Israel. Não colonatos: estradas e cidades do Estado de Israel tal como é reconhecido pela grande maioria dos países. Em suma, tal como a grande maioria dos países, o Google contorna, não vai por dentro.

2. Mas há caminhos por dentro, carros, gente, seria só sair de Ramallah numa manhã como esta, à chegada comprar pão, queijo, azeitonas, tomates para o almoço, dependendo o vinho e as chouriças da fé de cada um, a Galileia é já ali.

3. À chegada a Avis compramos pão, queijo, azeitonas, tomates, vinho, chouriças para o almoço, que está mais para pagão, ou para a fé de cada um ficar com cada um. É casa de entrar pela cozinha e, sendo de mulheres, ter ao fogão um homem-como-irmão, que por acaso se chama Paulo, sem parábola e sem ajuda, pelo menos nossa, recém-chegados. Ele já cortou tudo, as cebolas boiam na panela, daqui a pouco um panelão de ervilhas com ovos, à noitinha outro de caldo-verde. A uma inauguração assim ninguém chamaria vernissage, tanto a abrir como a fechar: queijo com casca, vinho do monte, pão de corcunda.

4. As paredes são grossas, os degraus tortos, as passagens de baixar a cabeça, e no quintal, horta, romãzeira, oliveiras, laranjeiras, poço, vista de água, como poderia ser a Palestina num plano do Google sem contornos. É sobre isso esta inauguração, a que Joana Villaverde chamou Animal’s Nightmare, por causa de um livro da palestiniana Suad Amiry, em que ela fala dos animais que na escuridão embatem contra o muro.

5. Às seis da tarde, Joana pisa o pátio da secular cavalariça de Avis para onde convergiu o trabalho que fez depois de duas temporadas na Palestina. Passou os últimos meses sozinha com as suas criaturas, e este é o momento em que quem quiser pode empurrar a velha porta carcomida, descascada, por baixo da faixa que diz Animal’s Nightmare, e entrar naquele mundo.

6. A porta encosta atrás de quem passa por ela, deixando a grande claridade lá fora. Agora, a luz que há vem por golpes, frestas, e dos faróis do velho Peugeot 404, parado logo à esquerda, encandeando as criaturas. Um dia Joana viu um Peugeot igual a este em Belém, Palestina. Quando achou um igual em Avis, soube que era esse o veículo de que precisava para a sua correspondência. Este Peugeot imobilizado é a imobilidade progressiva, ferrugenta, desta história. E o que há dentro dele, que ao aproximar parece uma estranha amálgama de metal? Dezenas e dezenas de pás, duzentas pás com criaturas pintadas, por vezes animais, mas sobretudo gente, homens e mulheres que Joana pintou como se fossem também eles os animais a embater no muro quando escurece. Está semiobscuro aqui dentro, neste carro de há séculos, e todas as noites alguém continua a embater no muro, gente varrida da história, em queda de avô para pai para filho.

7. Não penso em Jenin por acaso. Do Peugeot 404 sai a música que uns amigos de Joana tocaram numa varanda em Jenin, quando ela lá esteve. Ela fez todo esse caminho que não existe no Google, que não se vê de fora, nem de longe, uma linha de vida entrecortada, muro, colonatos, checkpoints, gente interrompida, com quem é preciso coincidir para que a ficção acabe. Porque no real não há distância, é o momento em que algo fica vivo.

8. É possível fazer algo lá? É possível fazer algo cá? Como toda a gente que foi, e voltou, e voltou a ir, Joana fez estas perguntas para as quais não há exactamente resposta, talvez apenas uma decisão: a de um caminho por dentro que implique quem ficou implicado ao ir lá. Animal’s Nightmare será a tradução disso, a implicação de Joana Villaverde, o seu caminho contra o muro.

9. Vem o panelão do caldo-verde, meio mundo de nariz na taça, meio mundo de nariz na lua, que esta noite está mesmo cheia, primeiro sábado de Abril de 2015. Veio gente do Norte e do Sul, e pelo menos um par luso-siciliano que só está junto quando pode. Conhecíamo-nos apenas de escrita, aproximados por este Oriente, e eles não se viam um ao outro desde o Verão. Mas na noite anterior já dormiram aqui, e esta noite vão dormir aqui. Um mapa só deles, de que agora Avis faz parte. Avis-Palestina a dois, pelo caminho de dentro.

10. Voltei nessa noite mesmo e estou a acabar este texto em Lisboa, à hora a que em Avis ainda se come hummus no quintal, um almoço de domingo, que no calendário cristão calha ser de Páscoa. Chegou a ameaçar chuva mas algo algures mudou de ideias, e nas fotografias que entretanto fui recebendo está toda a gente vestida de Verão, mesa de amigos, por cima laranjas, ao fundo papoilas.

Foto
DR

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