O caldeirão de Hayao Miyazaki

Depois de "A Princesa Mononoke", volta a estrear em Portugal um filme de Hayao Miyazaki. O cineasta, nascido em 1941, é tido como o expoente máximo da animação japonesa, e é, nesse género específico, seguramente o realizador japonês mais divulgado internacionalmente.

E ainda bem, como esta "Viagem de Chihiro" volta a dar ocasião de dizer. Para todos aqueles que não só não são especialistas na animação japonesa como perderam o contacto com ela algures na passagem dos anos 70 para os 80 - depois da "Heidi" e do "Marco" nas manhãs de sábado na televisão... - a descoberta de "A Princesa Mononoke" fora uma experiência surpreendente: qualquer coisa a ver com o regresso a uma paisagem que se reconhecia da infância mas onde entretanto alguma coisa tinha mudado. Com "A Viagem de Chihiro" não se repete a surpresa, mas dá-se a confirmação: Hayao Miyazaki é alguém que vale mesmo a pena seguir.

ecossistema.

Uma das coisas que normalmente se destaca na obra do cineastan é a sua abordagem de temáticas relacionadas com preocupações ecológicas. Não é estranho, num japonês que cresceu no "day after" da bomba atómica, e viveu esse medo que não só percorreu as obras de vários cineastas japoneses como deu origem a algumas das mais célebres séries (o "Godzilla"...) do cinema japonês. Talvez se vejam menos essas preocupações em "A Viagem de Chihiro" (embora passe por aqui o tema da "sujidade" e o filme arranque com flores que morrem e uma construção arquitectónica ambientalmente despropositada) do que o que se viam em "A Princesa Mononoke", com os seus toques de parábola "new age". O que se vê bem, porque isso está na raiz de toda a estrutura narrativa de "A Viagem de Chihiro", é a concepção do filme como se do retrato de um ecossistema se tratasse - outra característica recorrente nos filmes de Miyazaki. Ele próprio o diz: "não consigo fazer um filme se me referir ao problema da humanidade como parte de um ecossistema". Ou seja, um mundo formado por equilíbrios preciosos e matemáticos, onde nenhuma parte é mais importante do que o todo - ou, como também se diz sobre os "mundos" de Miyazaki, "uma enorme máquina orgânica".

Não se pode, portanto, pôr em causa esse equilíbrio sem sofrer as consequências. De algum modo, essa é a lógica determinante de "A Viagem de Chihiro", onde a pequena protagonista passará por milhentas provações, num universo fantástico povoado por bruxas, deuses, espíritos benignos e malignos, homens-animais e animais-homens, para repara a falta cometida pelos pais (transformados, como castigo, em porcos). Sobre o que, em termos sociais com incidência no Japão de hoje, esta "storyline" pode querer dizer, há para lá de tudo o que se possa adivinhar, uma enigmática declaração de Miyazaki numa entrevista: "no Japão há cada vez mais jovens como Chihiro, que não vão atrás dos pais e hesitam em responder-lhes". A propósito disso, Miyazaki refere uma cena no princípio do filme, quando o pai chama por Chihiro e ela só lhe responde à segunda: "os meus colaboradores queriam pôr Chihiro a responder só a terceira, porque no Japão os jovens cada vez respondem menos aos pais".

de hollywood a paula rego.

O certo é que a pequena Chihiro não pode contar com os pais (que durante quase todo o filme são dois porcos entre outros porcos numa pocilga), tem que se desenrascar sozinha no mundo fantástico do filme. É na criação e descrição desse mundo fantástico que a imaginação de Miyazaki faz maravilhas. Os primeiros 45 minutos de "A Viagem de Chihiro", tempo da descoberta, cartografia e apreensão do modo de funcionamento daquele mundo (um território sem território que tem no centro uma estação termal para... 8 milhões de deuses!) são absolutamente sedutores. Misturam-se elementos certamente extraídos das mitologias populares japonesas e dos contos tradicionais com outros, mais universais, potencialmente retirados do imaginário clássico da literatura juvenil (uns pozinhos de Júlio Verne, por exemplo nas maquinarias que fazem funcionar as termas), do cinema hollywoodiano/disneyano (algures entre a "Branca de Neve" e o "Feiticeiro de Oz" - numa intriga e num universo que bem podiam ser abençoados por Lewis Carroll (também já se falou de "A Viagem de Chihiro" como de uma versão japonesa de "Alice no País das Maravilhas").

Figurativamente, e até por toda esta condensação de referências heteróclitas, trata-se de um filme bastante mais arrojado do que "A Princesa Mononoke". "A Viagem de Chihiro" não hesita, mesmo, em apostar em soluções de alguma violência - por exemplo, a sequência em que Chihiro descobre os pais transformados em porcos; ou personagens como a "Yubaba" (espécie de bruxa velha, com uma cabeça gigantesca, que dirige as termas) ou o seu "filhinho" (um bebé gordo, enorme e disforme, candidato a mais horripilante criança da história do cinema). O grotesco e a disformidade são elementos fundamentais no caldeirão de "A Viagem de Chihiro", e por isso há quem avance com referências pictóricas a priori inesperadas - Bosch, Bacon, Paula Rego... - mas que são menos surpreendentes a posteriori.

E há, narrativamente, uma implacável lógica de pesadelo - tudo está no seu sítio e não está, tudo parece absurdo e, no fim, juntando-se todas as peças, tudo parece terrivelmente lógico. É esse o "ecossistema" narrativo de Miyazaki, plenamente exposto num filme que atesta que ainda é possível fazer-se animação industrial de grande público sem que seja necessária a submissão a regras pré-formatadas.

Sugerir correcção
Comentar