O artista anónimo que pintou o retrato oficial de Marcelo em troca de um abraço

Mestre Bessa pinta há mais de 40 anos na Rua do Almada, no Porto. Ultimamente, fá-lo numa montra virada para quem passa. Mas só o retrato que pintou para Marcelo o tirou verdadeiramente do anonimato.

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ADRIANO MIRANDA
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“Ainda não sei se estou acordado”, diz-nos o mestre António Bessa no atelier do número 314 da Rua do Almada, no Porto, onde a 9 de Junho, na véspera da celebração do Dia de Portugal, entrou Marcelo Rebelo de Sousa para conhecer o retrato pintado pelo artista anónimo que deverá vir a integrar a galeria de retratos do Museu da Presidência da República.

Foi uma decisão do momento. Marcelo Rebelo de Sousa, com a agenda preenchida, foi desviado da Praça da Liberdade para o atelier, não muito longe, após lhe terem dito que lá estava a pintura. António Bessa não queria acreditar. Tinha esperado a manhã toda por esse momento. Já estava a perder a esperança quando Marcelo entrou na galeria, passando pelo retrato de 1,4 metros de altura por um metro de largura na montra. O Presidente “suspirou” e perguntou como podia levá-lo. “Queria comprá-lo." Mas o quadro não era para vender, era para oferecer. Disse-lhe o pintor que o entregaria em casa. O Presidente contrapôs que o destino seria outro: a Presidência da República, na qualidade de retrato oficial do mandato do chefe de Estado.

A decisão inesperada apanhou António Bessa de surpresa, por não ser habitual a aposta num artista desconhecido. Ainda está a processar a ideia de dividir aquela galeria do museu com artistas consagrados como Júlio Pomar, autor do retrato de Mário Soares, Paula Rego, que pintou Jorge Sampaio, Columbano Bordalo Pinheiro, que retratou Manuel de Arriaga, Teófilo Braga e Manuel Teixeira Gomes na primeira metade do século XX, ou Barahona Possolo, que pintou o retrato de Cavaco Silva – escolha que também não terá sido óbvia pela natureza da sua obra, mais direccionada para a representação erótica de mitos da Antiguidade.

O retrato ainda está na montra do atelier. “Estou à espera de indicações para saber quando o vêm buscar”, explica. “Presidente e o povo são sempre povo” foi a frase que pôs num letreiro debaixo da tela. “Descreve o que este presidente representa para mim. Não me lembro de outro que tenha sido tão próximo do povo”, afirma o pintor de 63 anos que pinta profissionalmente há mais de 40.

No quadro, Marcelo está sentado no degrau de uma escada, sorridente, numa pose descontraída. “Juntei duas fotos para este trabalho. A cara é de uma imagem diferente da do resto do corpo”, conta. Entendeu que aquela expressão facial se enquadrava melhor na pose descontraída de uma das fotografias que serviram de base para a pintura. Para pintar o Presidente, escolheu Maria Callas como banda sonora. Não pinta sem música e escolhe-a de acordo com o tema que tem em mãos, diz.

Autodidacta? Não, alquimista

Os últimos dias têm sido um “rebuliço”, com solicitações constantes de pessoas interessadas na história que o fez sair do anonimato. António Bessa é um artista desconhecido do grande público, mas está habituado a pintar para uma plateia.

Tem atelier no Almada há cerca de 40 anos. Há cinco mudou-se para o actual, onde pinta à vista de todos os que passam pela montra do espaço, que é também uma galeria e uma escola de pintura. É uma montra viva e um sonho antigo. “O outro atelier que tinha mais abaixo não tinha montra, mas tinha uma caixa do correio”, recorda. Em torno da caixa de correio pintou um olho para incentivar quem passava a desvendar o que estava do outro lado: “Havia um ou outro mais corajoso que espreitava." Agora quem passa tem vista aberta para o atelier. Enquanto falávamos, foram raras as pessoas que ao passarem não pararam para espreitar. “Às vezes estou a pintar e sinto que me estão a observar. Há quem aplauda." 

Nascido e criado no Porto, na freguesia do Bonfim, despertou para a pintura muito cedo. Nunca teve outro ofício. Só a troca ocasionalmente por uma partida de bilhar às três tabelas, o único hobby que tem. Sem qualquer antepassado ligado às artes, começou a pintar “ainda em criança”. Quando tinha cerca de seis anos, costumava brincar numa mina com uns amigos. Um dia trouxe de lá um pedaço de carvão que usou para “sarrabiscar” uma superfície. “Reparei que com aquele pedaço conseguia várias nuances da mesma cor. A partir daí alguma coisa mudou”, recorda.

Aos 16 já vendia quadros, sobretudo retratos. Pintava também os cartazes dos filmes que estavam nos vários cinemas de rua da altura. Aprendeu sozinho: “Prefiro dizer que sou um alquimista e não um autodidacta." No processo, sempre quis encontrar uma linguagem própria. Para alargar o leque de conhecimentos, entrou aos 20 anos nas Belas-Artes do Porto, altura em que também começou a dar aulas de pintura particulares. “Foi o Júlio Resende que me acolheu, propondo-me como aluno extraordinário”, recorda. A porta de entrada para a via académica foi o próprio portfólio. Não tem diploma porque o estatuto de aluno extraordinário não o permitia. Ainda assim esteve lá quatro anos. Quando entrou, estava a sair a pintora Armanda Passos, cujo trabalho admira. Outras referências são os pintores José Malhoa e Henrique Medina. 

Na hora de definir o trabalho que faz, tem alguma dificuldade: “Acredito que é um trabalho diferente. Misturo acrílico, carvão e óleo e deixo alguns espaços da tela abertos. Há alguns pormenores mais sujos que se misturam com as cores. Quem sabe se um dia não nasce outro ismo”, brinca. O trabalho, considera-o acabado quando “fala” com ele. “Se o quadro não falar comigo é porque ainda não está terminado”, diz.

Fala da obra sem pretensiosismo, mas de forma apaixonada. Recebe-nos de bata e boina salpicada pela tinta e mostra-nos alguns dos trabalhos expostos no atelier, na sua maioria retratos, que faz por encomenda, e paisagens urbanas, sobretudo do Porto. Ajustava os preços dos primeiros retratos que vendeu, ainda em início de carreira, às possibilidades do cliente: “O preço correspondia a uma semana de trabalho: não minha, mas do cliente. Curiosamente ganhavam sempre todos o ordenado mínimo”, ironiza.

Actualmente, na Rua do Almada, onde todos os dias passam turistas de países diferentes, está numa “montra virada para o mundo”. “Já vendi quadros para todos os continentes."

O preço de um abraço

São mais de 40 anos de carreira “sem dar muito nas vistas”. Já pintou retratos de outras figuras públicas, como Rui Moreira, Pinto da Costa, Guilherme Pinto (o presidente da câmara de Matosinhos que morreu no ano passado) ou Cavaco Silva. Mas foi este que o tirou do anonimato.

Em Novembro do ano passado, quando a família real espanhola passou pelo Porto, António Bessa estava na Foz. “O rei estava hospedado ali perto e foi passear com o Marcelo”, recorda. Quando viu o Presidente da República, não hesitou e caminhou na sua direcção: “Deu-me um abraço, mas não foi um abraço de um Presidente. Senti que foi o abraço de um povo." Foi aí que decidiu pintar o retrato. Ainda antes de acabar o ano, foi recolhendo algumas imagens e em Março meteu mãos à obra. Demorou cerca de dois meses a terminar o trabalho.

Sabendo de antemão que Marcelo Rebelo de Sousa estaria no Porto para celebrar o 10 de Junho, guardou o dia para lhe oferecer o retrato, só não sabia como. Na apresentação de um livro cuja capa é da sua autoria, soube que o Presidente teria sido convidado a estar presente. Marcelo não apareceu, mas a autora, Kátia Andrade, fez-lhe chegar a informação de que o pintor da capa tinha também executado um retrato seu. António Bessa informou então a Câmara Municipal do Porto de que queria oferecer o quadro a Marcelo no Dia de Portugal. Foi-lhe dito que tudo fariam para que o Presidente passasse na galeria, mas com o aproximar da data, e não tendo tido mais informações, começou a ficar menos optimista.

No dia da visita ao Porto, conta o artista que foi a própria Kátia Andrade a tornar o encontro possível. Quando Marcelo se preparava para sair da Baixa portuense, furou o dispositivo de segurança para avisá-lo de que ali bem perto estava um retrato seu pintado por um artista anónimo. Não estava programado o desvio, mas o Presidente não quis ir embora sem ver a obra.

António Bessa ia poder finalmente cumprir o objectivo: oferecer o retrato a Marcelo. Não só o cumpriu como o superou, ao ser informado pelo próprio de que este será o retrato oficial do actual Presidente da República. “O resto é história”, diz.

Nunca tinha sequer pensado nessa possibilidade. Pintou o retrato inspirado pelo encontro na Foz, para retribuir o gesto do Presidente e a forma “simples” e “honesta” como acedeu à sua abordagem quando o abraçou: “É um retrato que fiz em troca de um afecto. Este quadro tem o preço de um abraço”.    

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