A celebridade de Kanye ainda não anulou o talento de West

Nunca pensou pequeno e não era agora que o iria fazer: o rapper americano deu a ouvir o novo álbum The Life Of Pablo ao mesmo tempo que revelava a sua nova colecção de roupa. Boas notícias: continua a estar no topo do mundo da música.

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Kanye West a dançar durante a apresentação dao seu novo álbum The Life Of Pablo ANDREW KELLY/REUTERS
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Os modelos que apresentaram a colecção de Kanye West no Madison Square Garden de Nova Iorque ANDREW KELLY/REUTERS
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Kanye West contente ANDREW KELLY/REUTERS
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Kanye West a dançar durante a apresentação da sua Yeezy Season 3 Collection ANDREW KELLY/REUTERS
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Caitlyn Jenner, Kourtney Kardashian, Kendall Jenner, Khloe Kardashian e Kim Kardashian na apresentação da Yeezy Season 3 Collection, de Kanye West ANDREW KELLY/REUTERS
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O público que assistiu ao lançamento do disco e da colecção de moda no Madison Square Garden de Nova Iorque ANDREW KELLY/REUTERS
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Alguns dos modelos que apresentaram a colecção de Kanye West ANDREW KELLY/REUTERS
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Kendall Jenner ANDREW KELLY/REUTERS
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Um grande lençol cobria o palco antes de o espectáculo começar ANDREW KELLY/REUTERS

Os jornalistas conhecem o dispositivo. Um músico prepara-se para lançar um disco e junta uma série de elementos da comunicação social numa sala para que estes possam ouvi-lo em primeira mão. Por vezes o músico está presente e vai comentando as faixas.

No fim de contas foi isto que Kanye West fez na noite desta quinta-feira. Com uma diferença. Em vez de meia dúzia de jornalistas numa sala, a sessão juntou 18 mil pessoas no Madison Square Garden de Nova Iorque, mais alguns milhares de espectadores espalhados por salas de cinema de 20 países, entre os EUA e a Europa – em Portugal o acontecimento foi projectado em directo no El Corte Inglés de Lisboa e nos cinemas UCI do ArrábidaShopping, em Gaia –, e ainda uma audiência avaliada em 20 milhões que pôde assistir a tudo pela Internet, através da transmissão em streaming do serviço Tidal, de Jay-Z.

O acontecimento estava inserido na semana de moda de Nova Iorque porque era também a apresentação da nova colecção de Kanye West. E lá estiveram realmente mais de 200 manequins, no centro da sala, durante cerca de uma hora, quase inertes, rostos fechados, numa encenação assumidamente impassível, e gente da moda como Anna Wintour, a influente directora da Vogue. Às tantas a manequim Naomi Campbell também surgiu em palco e ele chegou a confessar que um dia gostava de ser director criativo da Hermès ("Quero trazer tanta beleza ao mundo quanto possível”), mas a esmagadora maioria dos presentes ia pela música, seduzida pela promessa do novo álbum do rapper.  

Nesse sentido foi uma ocorrência inabitual, um verdadeiro eu-show-West, ao qual nem faltou a apresentação inesperada de um novo videojogo, na criação do qual esteve envolvido, sobre a chegada da sua mãe aos céus.

Às 21h30 de Lisboa a coisa começou. Entrou em cena Kanye West, acompanhado pelo gigante jogador de basquetebol Lamar Odom e pelo clâ Kardashian. A rodeá-lo, em palco, inúmeros amigos e cúmplices. “Se quiserem dançar façam-no. Façam o que quiserem”, lançou ele ao público que, na maior parte do tempo, pareceu compenetrado na audição. E depois deu-se o desfile das canções, com ele acercando-se do computador para lançar os temas e, ocasionalmente, fazer alguns comentários.

Uma forma inusitada de lançar um disco, mas não surpreendente vinda de Kanye West, 38 anos. Tempos houve em que centenas de pessoas faziam filas à porta das lojas de discos quando chegava o novo álbum de uma celebridade. Hoje já não. Mas sucedem-se as estratégias para fazer crescer a expectativa do público nas semanas anteriores aos lançamentos.

Aquando da edição do anterior Yeezus (2013), Kanye West dizia que já não se revia nas formas tradicionais de promoção da indústria: “Tenho uma nova estratégia, chama-se não ter estratégia. Tenho um plano para vender mais música – chama-se fazer melhor música.” É consciente do seu lugar. Sabe comunicar o seu universo. Em tudo o que faz – na forma como utiliza a Internet por exemplo , há uma intencionalidade artística. Controla todos os elementos à sua volta porque todos se interligam – da produção à criação, da distribuição à comunicação. As polémicas nas redes sociais nas últimas semanas (do ataque ao rapper Wiz Khalifa ao despique com o mítico basquetebolista Michael Jordan, passando pela enigmática defesa de inocência de Bill Cosby). Os ditos por não ditos com o título do álbum (que depois de muitas mudanças veio finalmente a ser The Life Of Pablo, discutindo-se agora de que Pablo se trata, Picasso ou Escobar). A gestão do mistério à volta dos convidados. No meio disto tudo, a tentação de o apelidar de calculista é muita. E existe uma parte disso na sua acção. Mas também de veracidade. E essa é a sua mais-valia.

No campo das celebridades pop, não existe quase ninguém como ele, desbocado, genuíno, arrogante, narcisista, contraditório, complexo, capaz de fazer auto-análise do seu comportamento e análise do dos outros. Ao longo dos anos foi percebendo que precisava da imprensa tradicional para ampliar o que tem para comunicar, mas o seu holofote está posicionado nas redes sociais. É a partir daí que vai compondo a narrativa que antecede o lançamento dos discos. E já se percebeu que a Internet vibra com a sua personalidade agitadora, adulando-o ou irritando-se com ele.

Não é por acaso que quase não dá entrevistas. Comunica directamente com o mundo, expondo as suas ideias, por mais parvas que sejam. Ou seja, comporta-se como um vulgar frequentador da rede. E a música?

Há boas notícias. A celebridade dos tablóides poderia, com o tempo, anular o excitante rapper, produtor e compositor que nunca perdeu o contacto com o que de mais estimulante se ia fazendo à sua volta e que mostrou sempre uma ambição inflexível. Mas não. Ainda não é com o novo The Life Of Pablo que deixa de estar no topo do mundo da música.

O seu oitavo álbum parece ser uma obra menos focada do que os seus anteriores discos, mas é mais uma excelente obra, com brilhantes momentos ao nível da sonoplastia, da lírica e das melodias. E, claro, há mais uma mão cheia de convidados (Rihanna, Frank Ocean, Chance The Rapper, The-Dream, Swizz Beatz, The Weeknd ou Kid Cuti).

Dir-se-ia uma obra que concretiza uma súmula de vários discos anteriores. Não tem tantos traços de apoteose como My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010), de electrónica minimal como Yeezus (2013), ou de introspecção emocional como 808s & Heartbeat (2008), nem canções imediatas como Late Registration (2005). Mas tem um pouco de tudo isso.

Parece uma obra de reflexão e, ao mesmo tempo, de celebração de si próprio, como se quisesse perceber onde se encontra no momento presente. Começa com Ultra light dreams, ritmo em câmara-lenta, coro gospel e baixo robustecido, num tema que mais parece uma oração, com a participação vocal de Chance The Rapper e, lá pelo meio, um verso de pendor universal, “Pray for Paris/ pray for the parents”, numa alusão aos atentados de Novembro em Paris, para de seguida regressar a si próprio: “I'm never going to hell/ I met Kanye West, I’m never going to hell.

Em Father stretch my hands Pt. 1 & 2, outra vez a batida lenta e um borbulhar electrónico sobre uma voz trabalhada electronicamente e mais dois convidados – Kid Cudi e Desiinger, enquanto em Freestyle 4 debita por entre um ritmo electrónico esquelético, interrogando-se sobre a sua sanidade: “Name one genius that ain’t crazy”, acaba por questionar.

Em Famous deparamos com a voz de Rihanna, num dos momentos mais harmónicos do disco, e um sample de Bam bam, canção reggae de Sister Nancy, que atribuem o balanço devido a um dos temas de impacto mais imediato do disco, apimentado pelo verso provocador onde a cantora Taylor Swift é visada (“I feel like me and Taylor might still have sex/ I made that bitch famous”). Em Fade, com participações de Post Malone e Ty Dolla Sign, somos transportados directamente para a Chicago dos anos 1980, quando o dinamismo rítmico do house mais profundo aí emergia, acabando Real friends por servir de contraponto, numa balada de belo efeito que é talvez o momento mais luminoso do álbum.

O disco encerra com Wolves, a voz alterada electronicamente numa balada electrónica distorcida, de ambiente sinistro, onde parece reflectir sobre si próprio e a sua família, ameaçada e cercada – “Cover Nori in the lamb’s wool/ We’re surrounded by the fuckin wolves”, trauteia, num tema que conta também com a participação vocal de Frank Ocean. 

Ao longo dos anos Kanye West tem dito ao que vem de forma desassombrada, ou arrogante, conforme as interpretações. Nunca escondeu que é incapaz de projectar de forma acanhada. O seu modelo são personagens como Prince, Michael Jackson, Le Corbusier, Picasso ou Coppola, gente que nunca pensou pequeno. “Se cair, ao menos que a queda seja lá do alto”, disse ele uma vez. Ao oitavo álbum continua firmemente de pé.

Nota: Este texto foi escrito antes de Kanye West ter comunicado esta sexta-feira através das redes sociais, que afinal o alinhamento do disco, revelado na quinta-feira, não era a versão final. 

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