Novos velhos americanos

Os Lambchop encerraram o Curtas Vila do Conde com uma actuação notável, entre filme-concerto e mini-álbum de grandes êxitos.

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Como se pode passar de minimalismo ilustrativo movimentado a sampler a uma versão de David Bowie em tom lounge-alternativo-pensativo em menos de duas horas sem por um instante perder o rumo de onde se está e para se onde vai?

Para os Lambchop, resolver essa quadratura do círculo pareceu uma brincadeira de crianças nesta noite de domingo. 

Em início de digressão europeia em Vila do Conde, antes de descer a Lisboa (terça-feira actuam no cinema São Jorge), Kurt Wagner e comparsas começaram por apresentar a sua colaboração com o cineasta Bill Morrison encomendada pelo Curtas 2015 antes de uma hora de canções seleccionadas (maioritariamente, mas não só, retiradas ao clássico Nixon). No processo, sublinharam aquilo que os tem mantido uma banda de culto fervente e apaixonado ao longo do último quarto de século: um artesanato de composição cruzando com elegância a solidez de construção da melhor country e do standard da canção popular americana, filtrado pelo crivo de uma transmissão longínqua de rádio perdida no éter onde eras e estilos se encontrassem em alegre miscigenação.

Na segunda parte, Wagner assumiu, perante um público reverente, o papel de um mestre de cerimónias entusiasmado de uma banda que em nada parecia estar “enferrujada” depois de alguns meses de férias e que parecia estar milimetricamente atenta a cada variação de temperatura e pressão das delicadas redes narrativas das canções. 

Antes, houvera o deslumbre dos 25 minutos de The Dockworker's Dream/O Sonho do Estivador, uma montagem de imagens pesquisadas no Arquivo Nacional de Imagens em Movimento da Cinemateca Portuguesa pelo americano Bill Morrison, estruturada (como o título o indica) como uma vida alternativa “sonhada” por um estivador – tal como Morrison dá com esta colagem uma nova vida a imagens perdidas há largas décadas. Os Lambchop ilustraram-na de modo simultaneamente propulsivo e pensativo, com uma suite instrumental ancorada num ritmo maquinal de sampler, misto de pouca-terra em viagem e ritmo de linha de montagem, sobre a qual bateria, piano e sopros iam criando subtis desenvolvimentos melancólicos e sonhadores. Como se a música (composta pelo teclista Ryan Norris) sublinhasse a dimensão onírica destas imagens sem nunca perder a sua ligação à terra.

Talvez o mais espantoso seja que as duas partes do espectáculo – interrompidas por um pequeno intervalo de dez minutos - não tenham parecido ser dois concertos diferentes, mas antes um fluxo contínuo de canções e lógicas. Mesmo que da discrição de The Dockworker's Dream se tenha acabado por ir dar à soul narcótica de Up with People e, já em encore exigido pelo público, a uma versão “lambchopizada” dos Young Americans de David Bowie que parece ter comentado, de modo curioso, o próprio estatuto do grupo de Kurt Wagner como veteranos pouco dispostos a ficarem parados no tempo.  

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