No teatro de Rita Cabaço, o corpo deixa o pensamento sair

Em palco com Cinema, texto de Annie Baker, Rita Cabaço volta a mostrar o porquê de ser uma das actrizes mais entusiasmantes do teatro português. Ligada aos últimos anos da Cornucópia e fundadora do Teatro da Cidade, quer encontrar no teatro um lugar de comunidade, de encontro com os outros.

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Acaba de ser distinguida com o Prémio da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, pelo seu desempenho em Música, de Frank Wedekind, sob direcção de Luis Miguel Cintra Nuno Ferreira Santos

Rose, Sam e Avery trabalham no cinema de uma pequena cidade norte-americana algures no Massachussets. Ela é projeccionista, eles limpam a sala. E nos intervalos entre sessões, enquanto varrem, enquanto se queixam da falta de asseio de alguns espectadores, das relações com o patronato e da possibilidade de a sala vir a ser vendida e deixar o seu projector de 35 mm em favor de um digital, enquanto se lamentam do vazio das suas vidas e recuperam cenas de alguns dos filmes que suspendem temporariamente a desilusão daquele trabalho, lembram-se de que, mesmo que o trabalho tão longe disso possa estar, terá sido talvez a cinefilia que os levou a escolher estar ali, ganhar um magro ordenado a troco de limpar as pipocas espalhadas caoticamente pelo chão, as bebidas vertidas sobre as cadeiras, etc.

Há um ano, quando apresentava com a sua companhia Teatro da Cidade a peça Os Justos, de Albert Camus, Rita Cabaço estava talvez mais próxima de Rose, trabalhando numa pizzaria para ganhar o suficiente para pagar a renda e responder pelos seus gastos. “Os problemas que por lá se viviam”, recorda agora, “passavam-me completamente ao lado. Mas via as pessoas à minha volta chatearem-se bastante com coisas muito pequeninas que eram enormes para elas, porque era a sua realidade, era o seu dia-a-dia, era a sua vida.” O drama gerado pela troca de uma mesa — o prato que devia seguir para a três, afinal fora servido na quatro — ou qualquer outro pormenor específico daquela actividade vem-lhe agora à cabeça quando pensa no mundo das três personagens de Cinema, peça escrita pela dramaturga norte-americana Annie Baker em 2013 que lhe valeu o Pulitzer, e que Pedro Carraca encena na Culturgest entre 19 e 23 de Abril, voltando à cena entre 3 de Maio e 3 de Junho no Teatro da Politécnica.

Em Cinema, sob a aparência de pouco se passar, passam questões raciais, condições sociais, a dignidade do/no trabalho, a precariedade, a perda de postos de trabalho ditada pela automação, a ditadura do entretenimento sobre a arte, tudo a acontecer entre longos silêncios e a limpeza da sala que quase mascara estas temáticas com os gestos despreocupados e vulgares. Argumentos que Carraca não precisou de desembolsar para convencer Rita a integrar o elenco — juntamente com Bruno Huca, António Simão e Pedro Gabriel Marques. Os dois haviam já trabalhado juntos na encenação para os Artistas Unidos de Punk Rock, texto ácido de Simon Stephens em que um selecto colégio privado inglês se vê virado pelo avesso por sete “punks de fato e gravata” (como lhes chamava o encenador), sete alunos dedicados a jogos de humilhação e impiedade para atenuar o tédio nos dias antes dos exames finais, e em que a futura elite política do país treinava um bullying que, possivelmente, continuaria vida fora.

A peça de Stephens, em que a actriz surgia ao lado de outros jovens actores de qualidades óbvias como João Pedro Mamede, Isac Graça ou Pedro Gabriel Marques, avançava em direcção ao disparo final com uma energia fulgurante, em que Rita Cabaço espantava pela forma quase insolente e provocatória com que tomava a cena. Passaram-se três anos, a actriz tornou-se uma presença recorrente nos derradeiros espectáculos do Teatro da Cornucópia e, aos 24, acaba de ser distinguida com o Prémio da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, pelo seu desempenho em Música, de Frank Wedekind, sob direcção de Luis Miguel Cintra.

Na Cornucópia

Punk Rock e Música são dois espectáculos fundamentais no seu percurso. “No Punk Rock, como éramos todos da mesma idade, tínhamos um à-vontade enorme e era muito prazeroso fazer aquele espectáculo por haver uma disponibilidade total, conhecíamo-nos muito bem, podíamos provocar-nos sabendo que isso não iria causar mal-estar. Quando há essa liberdade, as coisas fluem de uma maneira muito diferente.” É essa fluidez que lhe toma conta dos gestos em Cinema, tal como há meses acontecia também em A Estupidez, de Rafael Spregelburd, como se o palco fosse um lugar de total desprendimento. Em Música, a exigência era outra e colocada sobretudo aos seus ombros ao longo de três horas que eram de uma extrema entrega física, em que a actriz assumia o papel principal de pretendente a cantora de ópera, pouco dotada, que acabava por engravidar do professor de canto. Foi o seu maior desafio na Cornucópia, empurrada para os holofotes num momento em que a luz da companhia principiava a extinguir-se.

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Nuno Ferreira Santos

Por ali, reconhece, todas as experiências acabariam por ser bastante enriquecedoras — “Sentia que esticavam-me realmente, puxavam por mim”, diz. Em cada peça, desde que se estreou com a companhia em Pílades, de Pasolini, em 2014, era como se Rita entrasse numa carruagem que avançava embalada por anos de experiência e cumplicidade colectiva e tivesse de lutar consigo para não perder o andamento daquilo que era discutido sobre os textos desde o primeiro minuto. “Na Cornucópia começávamos sempre por ensaios de leitura, e eu sempre muito caladinha, porque sou muito introvertida, e sentia-me a correr para os acompanhar”, recorda da sua chegada à casa de Luis Miguel Cintra e Cristina Reis. “Estava aparentemente calma, mas por dentro a fazer um esforço porque aquelas conversas e aquelas pessoas são fascinantes, conhecem coisas que eu não conheço, e na altura discutiam coisas em que me era difícil interromper para acrescentar algo.”

Esse cuidado absoluto com o texto, dissecado e discutido ao longo de muitos ensaios de mesa, não eram novidade para Rita — “ainda que a intensidade e o tempo que no Teatro da Cornucópia dedicamos ao texto é muito maior do que em qualquer outro sítio que conheço”, nota. “Quando isso não acontece noutros sítios em que trabalho, sinto necessidade de fazer esse trabalho em casa, se não acho sempre que estou a ir pela superficialidade”, diz. “Mesmo que não esteja, sem esse trabalho parece que há muita coisa que me está a escapar, e isso pode deixar-me um bocadinho sem chão.”

Essa prática não lhe era desconhecida porque Rita formou-se na Escola Profissional de Teatro de Cascais e estreou-se no Teatro Experimental de Cascais, sob a direcção de Carlos Avilez, em As Bruxas de Salém, de Arthur Miller, em 2010, e era também esse o método ali professado. Depois de um par de anos no TEC, a fazer textos de Koltès, Tennessee Williams ou Kesselring, percebeu que precisava partir em busca de outras formas de ver e fazer teatro, conhecer outras pessoas, tendo-se então inscrito na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde se deu o encontro entre todos os cinco elementos fundadores do Teatro da Cidade.

A humanização

Se esse mergulho no texto como material de reflexão e discussão é uma das marcas mais fortes da sua passagem pela Cornucópia, isso relaciona-se de forma muito directa com aquilo que justifica a presença de Rita Cabaço no teatro. “No Teatro da Cornucópia”, explica, “foi importante conviver com aquelas pessoas para me lembrar que faço isto porque tenho um prazer enorme em estar com um grupo de pessoas a discutir, a pensar, a trocar ideias, a jantar e sempre a procurar um olhar sobre aquilo que nos rodeia.” É essa perspetiva de humanização absoluta do teatro que lhe interessa — e que, em colectivo, tenta transpor para o Teatro da Cidade. “O trabalho traz disciplina, sacrifício, obrigações, concentração, mas pode existir tudo isso com uma naturalidade qualquer e sempre com a relação entre as pessoas presente.” Essa relação, na companhia, passava por uma relação de amizade com toda a equipa, que fazia com que passasse horas na carpintaria, na bilheteira, no atelier de costura, fascinada por “um trabalho quase de comunidade”.

Uma das grandes armas de Rita Cabaço, e que levava para palco em Música, dando corpo e voz à pretendente a cantora lírica de parco talento, é a sua ausência de medo do ridículo. “Aquilo pedia que ela cantasse, ela canta mal e como eu também canto mal então vamos dar um show de péssima cantora — e foi isso que aconteceu”. Claro que não foi apenas isso e o espectáculo que deu era o de uma actriz plena a domar uma figura espezinhada e presa de uma relação de forças com o mundo masculino. Tem tudo que ver com a disponibilidade que a actriz acredita ser essencial ao seu labor e que, no caso em que há um entendimento complementar com quem esteja a dirigir, pouco mais há a fazer do que “deixar as ideias saírem pelo corpo — o corpo é a ferramenta que deixa o pensamento sair”. É nesses momentos, livre de constrangimentos, que acredita surgir o prazer puro de representar.

Só que nem tudo é prazer nesta profissão, confessa. “É uma actividade de oito ou oitenta: pode dar o maior prazer do mundo, em que passo o dia a falar com pessoas, a discutir, a ler e a pensar sobre várias coisas e regresso a casa estimulada; mas pode ser muito ingrato fazer tudo isto e, ao fim do mês, não ter dinheiro para pagar a renda.” Também o meio teatral, reconhece, a deixa por vezes um pouco desalentada, devido a picardias ou acessos de mesquinhez com que tem dificuldade em relacionar-se. Tudo isso, na verdade, contribui como prova definitiva de que é isto que quer fazer, porque a estabilidade é inexistente e o reconhecimento não lhe põe pão na mesa.

A efemeridade de tudo que diz respeito à profissão é algo de que não se consegue desligar em absoluto. Depois de ter rodado com Sérgio Tréfaut uma longa-metragem baseada em Seara de Vento, livro de Manuel da Fonseca, experiência que a apaixonou, Rita Cabaço diz não saber onde vai estar daqui a seis meses. Talvez a possamos encontrar numa pizzaria, num restaurante ou num café. E se a ela não é nada que a assuste, a nós deixar-nos-ia mais descansados se essa pizzaria, esse restaurante ou esse café, assim como acontece com a sala de cinema que espelha a plateia do Pequeno Auditório da Culturgest, se encontrasse em cima de um palco.

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