No palácio da família Eugénio de Almeida com os fantasmas dos Castro das 13 arruelas

A casa onde viveu o latifundiário e mecenas que criou a fundação alentejana que hoje associamos à arte contemporânea e ao vinho da Cartuxa está aberta ao público. Guarda memórias de um palácio mourisco e de outro da Renascença, a que não falta sequer uma Sala do Amor.

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Frescos do palácio Miguel Manso
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Os frescos da Sala das Audiências Miguel Manso
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Sala do Bilhar no 1.º piso, onde Marcelo Rebelo de Sousa recebeu a Presidente do Chile Miguel Manso
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A cozinha Miguel Manso
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As janelas ao gosto mourisco Miguel Manso
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A loggia que dá para o Pátio de São Miguel Miguel Manso
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O retrato de Maria Teresa Eugénio de Almeida Miguel Manso

Depois de lermos a carta de 28 de Fevereiro de 1925, quase conseguimos ver José Maria Eugénio de Almeida sentado no Palace Hotel, no Buçaco, a escrever ao filho mais novo. Com 50 anos, este dandy está hospedado naquele que se tornou um símbolo dos hotéis de luxo em Portugal, em mais uma das suas muitas viagens, e diz ao filho de dez anos, Vasco, que não vão passar as férias juntos, mas que tem muitas saudades.

“Este ano passará as férias da Páscoa em Pinhel, juntamente com o José. […] É preciso ter lá o maior juízo e ser bem-educado. Nada de correrias, pois o seu irmão não pode, como sabe, fazer correrias. Não leve a bola e nunca fale da doença ao seu irmão para ele se não apoquentar. Tome cuidado com o frio, estude, e seja bem-comportado para vir a ser um homem de bem”, diz-lhe o pai, preocupado com a saúde do filho mais velho, que sofrerá as consequências de uma meningite toda a vida. “Sempre que precisar de qualquer coisa, escreva. Qualquer domingo pode passá-lo com o Senhor Torres indo com ele ao Estoril e ao Coliseu. Mas será em o tempo melhorando e em eu mandando dizer. Quando for para Pinhel é preciso levar roupa para 15 dias e não esqueça o seu sobretudo. E as botas fortes que ultimamente se fizeram em Lisboa mas na viagem leve os sapatos melhores. Veja se anda sempre com as unhas limpas e não ande desgrenhado dos cabelos.”

O primeiro conde de Vill’Alva, casado desde 1902 com Alice Irene de Sousa Araújo, só tem descendência de uma relação fora do casamento. A mãe de Vasco, o mecenas que criou a Fundação Eugénio de Almeida em Évora, é Antónia Gomes, uma senhora de Lisboa que não pertencia ao mesmo meio social da família.

“A carta transmite a distância que ele tem em relação ao filho porque é uma educação que se faz por correspondência”, explica Rui Carreteiro, coordenador da área de património e investigação da Fundação Eugénio de Almeida. Carreiteiro, além de ser responsável pela biblioteca e pelo arquivo, onde está toda a documentação da família e se guarda esta carta “agridoce” de um pai para um filho, é também conservador do Paço de São Miguel e da Colecção de Carruagens, os equipamentos que se escondem neste monumento de Évora, situado muito perto do Templo de Diana, a que se chega depois de se contornar o edifício onde está o Museu de Évora e de passar pelas traseiras da Sé.

Há pouco mais de um mês, o Paço de São Miguel passou a ter um horário fixo de abertura ao público. Além das visitas com marcação prévia, já é possível, às sextas, sábados e domingos, das 17h às 20h, entrar na casa-museu da família Eugénio de Almeida, cuja última representante deste ramo morreu recentemente, aos 95 anos.

Maria Teresa Burnay de Almeida Bello, a viúva de Vasco Maria Eugénio de Almeida, usou até ao final da vida o Paço de São Miguel como residência, onde além dos espaços que já podemos visitar, dispunha de uma área reservada. Agora, após a execução testamentária, o edifício passará definitivamente para as mãos da Fundação Eugénio de Almeida, criada nos anos 1960 pelo seu marido para desenvolver a cidade e a região de Évora, e que é proprietária de 6500 hectares de terra no concelho, onde é produzido vinho sob a marca Cartuxa, origem da maior parte do financiamento da instituição.

Se no guião escrito por Rui Carreteiro para orientar a visita ao Paço de São Miguel José Maria Eugénio de Almeida é apresentado como o “gentleman” desta família burguesa, que não resistiu a ser nobilitado, há vários outros “cognomes” escolhidos a pensar numa comunicação capaz de animar as visitas guiadas das 14 mil pessoas que anualmente e desde 2013 passam pelos equipamentos culturais do Pátio de São Miguel, ano em que a Fundação Eugénio de Almeida abriu este importante património de Évora ao público.

Ao olhar retrospectivamente para as quatro gerações da família Eugénio de Almeida, podemos dizer que José Maria (1811-1872) “foi o génio empreendedor e visionário”, o criador da fortuna, Carlos Maria (1845-1914), “o agricultor”, que definiu a estratégia fundiária, e o José Maria que escreve a carta, o primeiro conde de Vill’Alva (1873-1937), “o sportman, o gentleman ou o homem de sociedade”. Finalmente, Vasco Maria Eugénio de Almeida (1913-1975), é o “fundador”, o mecenas que criou a fundação alentejana e o único da família que viveu no Paço de São Miguel.

O renascer do palácio

Vasco Eugénio de Almeida comprou o Paço de São Miguel em 1957, em avançado estado de degradação. A recuperação, feita com a colaboração da Direcção-Geral do Património Cultural (o nome actual), durou 15 anos e revelou um conjunto cujas origens remontam ao alcazar mourisco, pois com a conquista cristã de Évora, em 1165, parte do palácio já faria parte da estrutura defensiva da velha cerca murada da cidade. No século XVI, o humanista André de Resende, que viveu na cidade, lembra que aí fizeram a sua sede os cavaleiros da ordem militar de Calatrava (depois Ordem de Avis), fundamentais para a feudalização do sul do território. Mas deve-se ao capitão-mor da cidade, D. Diogo de Castro, também citado pelo humanista, algumas das mais importantes obras no palácio e a perda, de certa maneira, do seu carácter defensivo no século XVI. O período entre as duas ocupações não é claro, mas terá estado ligado à coroa portuguesa.

Será na altura dos Castro das 13 Arruelas, como a família desta nobreza rural é conhecida, que o palácio ganha outro piso e são desenhados os belos arcos em ferradura da fachada, num estilo mudéjar. Estamos nos primeiros anos do século XVI e é já passadas algumas décadas, por volta de 1570, com D. Sebastião no trono, que aparecem as duas lógias com elegantes colunas toscanas, que dão para o pátio de São Miguel e para o jardim murado que o paço esconde no interior. A maior parte destes elementos, como as janelas geminadas de sabor mourisco, foi descoberta pela campanha de obras empreendida por Vasco Eugénio de Almeida, que quis encontrar em Évora um local de residência mais permanente depois de a família ter vendido em Lisboa o Palácio de São Sebastião da Pedreira e ao mesmo tempo ajudar as autoridades locais a recuperar um monumento importante da cidade que estava classificado com património nacional desde 1922.

O historiador de arte Joaquim Caetano nota que as duas lógias, bem como a regularização da fachada e da planta do paço, “mostram que os Castro pretendem fazer um palácio com uma linguagem definitivamente clássica, à italiana”, como defendia o tratado de arquitectura de Sebastiano Serlio, acabado de publicar em Itália e dedicado à transformação de palácios góticos em renascentistas. Já no interior da casa, é também nessa altura que é erguida a Sala Oval ou Sala do Amor, como uma cúpula que permite inscrever um ambicioso programa de pintura a fresco, com continuação em mais duas salas. O Paço de São Miguel é, aliás, conhecido por albergar “o mais fascinante conjunto de frescos profano que nos deixou a arte de Quinhentos”, escreve o historiador numa obra dedicada às pinturas, feita em parceria com José Alberto Seabra Carvalho, que tal como Caetano é conservador de pintura do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.

Frescos, amores e heróis

Descobertos em 1933, assinados e datados por Francisco de Campos, estes frescos “são dos poucos exemplos que restam hoje do que deve ter sido uma certa moda, nalguma nobreza, de criar uma maneira de viver italianizada, utilizando uma série de referentes que vêm da cultura clássica, quer do ponto de vista formal, com a utilização dos grotescos, quer do ponto de vista das referências literárias”.

Os frescos baseiam-se sobretudo em dois textos, diz o historiador: nas Metamorfoses, de Ovídio, que tinham sido publicadas em Évora exactamente nessa década, e nas Imagens, de Filóstrato, mais directamente. “Este último é o mestre naquilo a que na poética clássica se chama a ‘Écfrase’, ou seja, a capacidade de descrever exactamente aquilo que se vê. Quando ele descreve a ‘Batalha dos Amores’, que é aquilo que vemos na parte central dos frescos da Sala Oval, com os meninos a atirarem maçãs uns aos outros, esse amores são os filhos das ninfas, que vemos ao lado, e dos deuses, que aqui é quase sempre de Júpiter, o tema das Metamorfoses. Ele mascarava-se de outras coisas para enganar as raparigas! Segundo Filóstrato, e outros autores, é desses amores que vai nascer a geração dos heróis. É nessa geração que os Castro se queriam rever.”

O programa iconográfico ligado a uma nova ideia de palácio, sublinha o historiador de arte, corresponde “a um gigantesco aumento de importância política que os Castro vão ter ao longo do século XVI” e que acaba com a obtenção do título de condes de Basto, já no tempo dos Filipes de Espanha e no início da União Ibérica.

O aumento de peso político e de riqueza é o resultado de uma estratégia de casamentos com a alta nobreza e de associação à coroa portuguesa, que levou D. Diogo, por exemplo, a ser escolhido como mordomo-mor da princesa D. Joana. A filha do imperador Carlos V casou com o herdeiro do trono português, o príncipe D. João, desaparecido logo em 1554, dias antes do nascimento de D. Sebastião. O jovem rei morou, aliás, no Paço de São Miguel entre 1573 e 1575.

A campanha de frescos está assinada com a data de 1578, ano da morte de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, batalha em que participaram também D. Diogo e o filho. No regresso, já não é a famosa batalha em Marrocos que figurará nos frescos da Sala de Jantar, mas a da tomada de La Goleta (Tunes), em que D. Diogo tinha participado anos antes junto das tropas de Carlos V, uma vez que de Alcácer-Quibir não havia propriamente feitos heróicos a relatar.

“No espaço de duas ou três gerações passam de uma nobreza de importância local para a ocupação dos mais elevados cargos na corte”, aponta Joaquim Caetano, referindo-se ao neto do velho D. Diogo, também de nome Diogo, que foi governador do reino em 1627 e poucos anos depois Vice-Rei. Mas a Restauração e a queda dos Filipes, em 1640, estavam à porta, altura em que os Castro se exilam em Espanha e o palácio entra num período obscuro. O último conde de Bastos já não volta a Portugal, morrendo nas guerras da Catalunha, e o palácio regressa à coroa portuguesa.

O autor dos frescos, o pintor Francisco de Campos, provavelmente de origem flamenga, é muito usado pelas grandes famílias de Évora e do resto do Alentejo, trabalhando para os duques de Bragança, em Vila Viçosa, e para a Sé de Évora. “Nós temos muito poucos programas de frescos profanos que tenham sobrevivido, por isso os do Paço de São Miguel são muito importantes. Os frescos dão-nos um bocadinho o que era a decoração de um palácio daquele tempo. Temos Vila Viçosa, um pouco posterior, e mais nada.”

O que é que os frescos dos tectos significam? “O Santiago Sebastián [historiador de arte espanhol] definiu três vertentes que o palácio da Renascença pretendia ter: o Templo do Amor, o Templo da Virtude e o Templo da Fama. Nós em Évora encontramos esse programa. Temos o Templo da Fama com a Sala da Tomada de La Goleta, o Templo do Amor com a Sala Oval e temos na Sala das Audiências uma série de elementos iconográficos que nos atiram para as virtudes. É um exemplo muitíssimo bem preservado de um programa que junta a ideia do heroísmo e da própria cultura clássica à história familiar.”

Rui Carreteiro, o conservador do Paço de São Miguel, lembra ainda os frescos do piso superior (entre 1580 e 1590), feitos numa campanha posterior, que o historiador de arte Vítor Serrão atribui a Giraldo Fernandes de Prado.

“A maior atractividade e maior espanto para os visitantes são os frescos”, mas é sobre as vivências da família Eugénio de Almeida que Carreteiro gosta mais de falar durante as suas visitas guiadas: “É natural. Passei muitos anos a estudar a documentação. O conteúdo do Paço de São Miguel é um prolongamento do que está no arquivo e na biblioteca. Por exemplo, algum do mobiliário que ali temos foi encomendado aos principais fornecedores das casas reais europeias, como Henri Fourdinois. Essas encomendas estão nos livros de contabilidade e de escrituração da casa, na correspondência.”

Mas o arquivo, sublinha Rui Carreteiro, permite também perceber uma parte da história urbana de Lisboa. “Uma vez que temos aqui as plantas de expropriação e [de venda] de muitas propriedades que a família tinha em Lisboa. Os parques Eduardo VII, de Monsanto ou de Santa Gertrudes, onde é hoje a Fundação Calouste Gulbenkian. Não é só a história das duas famílias mas remete também para a história do país.”

Foi no Paço de São Miguel que Marcelo Rebelo de Sousa recebeu a Presidente do Chile, como lembrou a secretária-geral da Fundação Eugénio de Almeida, Maria do Céu Ramos, num regresso recente do palácio aos protocolos de Estado. Agora, sublinha, depois de todas as obras que permitiram mostrá-lo ao público, só falta conseguir reabrir a Porta da Traição no pátio do palácio, permitindo uma melhor ligação entre a parte norte da cidade, onde está a universidade, e a acrópole, lugar do Tempo de Diana. “A câmara municipal disse que vai retomar o projecto do arquitecto [João Luís] Carrilho da Graça. É que nós não podemos intervir no espaço público…”

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