No dicionário de Samuel Úria, uma palavra pode mudar o mundo

Em tempos um trovador com jeitos de Messias do lo-fi, Samuel Úria é hoje um dos mais inspirados escritores de canções portugueses. Carga de Ombro, terceiro álbum da sua discografia visível, é um exemplo de como as canções podem exaltar as palavras e não tapá-las com instrumentos.

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FOTO: Rita Carmo

“Nunca menosprezar que um jota ou um til podem mudar o mundo, a nossa existência, podem até mudar muito daquilo em que as pessoas acreditam.” A frase sai da garganta de Samuel Úria à mesa de um café no Largo da Graça, em Lisboa. Por cima da mesa, uma televisão que se vai esforçando por roubar a atenção com a transmissão de um Real Madrid-Manchester City que há-de estender aos madrilenos o salvo-conduto de acesso à final da Liga dos Campões. Carga de Ombro, álbum que Úria acaba de lançar na NorteSul, terceiro das contas da sua vida pós CD-R, está polvilhado de alusões futebolísticas que vão da legalidade no limite da carga de ombro aos filhos na cantera (“mas nenhum promete”). Apesar do interesse que o músico possa confessar pelo desporto, é sobretudo a apropriação do léxico da bola que está presente no disco, nesta sua forma de sorver conhecimento e vocabulário em todo o lado e aplicá-lo em causa própria – ou em casa própria.

Quando fala de um jota ou um til que podem mudar o mundo, Samuel Úria refere-se, naturalmente, ao poder transformador da linguagem. Mas se por cima das nossas cabeças há uma transmissão televisiva, imaginemos que esta sua frase é o prato forte daquilo que nos está a dizer, ao mesmo tempo que, em rodapé, passa uma mensagem que ele nos decifra de pronto. O jota e o til aparecem numa alusão a Mateus 5:18: “Até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei, sem que tudo seja cumprido.” Crescido no contacto próximo com a Bíblia na igreja protestante de Tondela, Úria transporta para a sua música este cuidado absoluto com a palavra. Não há um único verso que pudesse ser outro, não há um só significado que pudesse ser trocado por uma solução mais cómoda por razões de métrica ou de rima. Cada palavra numa canção sua pousa no sítio certo. As leituras são livres, mas a letra não é negociável.

“Uma educação religiosa protestante, sendo minoritária em Portugal, à partida é logo mais fervorosa e intensiva”, reflecte com a comparação pronta a sacar. “Dentro do cristianismo, o catolicismo dá muito valor à tradição, que é uma coisa mutável e vai sendo determinada por concílios e por papas. O protestantismo é a Sola Scriptura, uma coisa estanque, definida.” É daí, concede, que vem a sua responsabilidade perante aquilo que escreve, acreditando que “as palavras podem conter manifestações divinas”. Nesta sua relação com as letras que não se limita à plasticidade ou à elasticidade dos fonemas, a palavra pode ser uma senha de acesso a algo que não é terreno, que transcende o próprio mundo.

A vivência religiosa deu-lhe não apenas a desenvoltura no manejamento da língua e na gestão cuidadosa das imagens sugeridas pelas letras, mas também uma forma algo críptica de escrever, chamando para as canções um sem-fim de referências distintas. Mas mesmo ao nível estritamente musical, a frequência da igreja protestante havia de oferecer a Samuel Úria muitas das suas bases fundacionais. Praticante discípulo de uma santíssima trindade que fixa em Johnny Cash, Bob Dylan e Leonard Cohen, surpreender-se-ia ao ouvir My Mother’s Hymn Book, soberba gravação que Cash realizou do hinário da sua mãe, originalmente incluída na caixa Unearthed. “Muitas das músicas que o Johnny Cash canta são músicas que eu cantava na igreja”, diz. “Esses hinos da mãe dele são músicas com que convivi desde miúdo. Deixa-me muito feliz saber que às vezes estou a fazer canções com as bases com que ele fez.” Da mesma maneira que quando conheceu Elvis Presley já lhe conhecia parte do reportório, mas cantado em português e em funções religiosas.

Não espanta, por isso, que aquilo que existe de blues, soul e gospel em Samuel Úria não soe a uma versão deslavada de músicas norte-americanas e não se apoie num português postiço que o poderia levar a tropeçar nos carris, nos campos de algodão ou nos bancos corridos de igreja. Todos quantos possam presumir que encharcou os ouvidos de gravações essenciais de Sister Rosetta Tharpe ou Mahalia Jackson para chegar a esta música estarão redondamente enganados, porque esse mesmo património não lhe chegava com o romantismo de uma pátria longínqua e de vidas imperscrutáveis, mas antes com a naturalidade quotidiana tondelense das traduções propostas por João Ferreira de Almeida. A sua primeira massa são as canções que as igrejas protestantes adaptaram da música de cabaré ou dos hinos, só depois os gigantes da canção norte-americana de quem se confessa profundo devedor.

Quem nunca deslocou o maxilar

Da mesma maneira que em Portugal, nos anos 90, grassavam as bandas que faziam do inglês a sua língua oficial por todo o seu cardápio de referências pertencer a terras da anglofonia, Samuel Úria havia de começar a fazer música em português devido à familiaridade dessas canções religiosas com ecos de rock, gospel, soul e r&b ouvidas no interior da igreja – uma espécie de portal encantado para uma sonoridade de raízes americanas milagrosamente plantada em Tondela. Até mesmo quando se aventurou nas primeiras bandas de garagem começou por tocar uma versão de Budapeste, dos Mão Morta – “e se há canção fixe neste país é essa”, diz. “Depois, um dia, ligou-me o baterista a dizer que no ensaio seguinte íamos ver algumas canções dos Íris”, recorda. “Nunca mais apareci.”

É o tipo de equívoco de popularidade que Samuel Úria recorda também no terramoto de qualquer adolescência de um nascido na segunda metade da década de 1970. Tinha 12 anos quando saiu Nevermind, o álbum dos Nirvana que atirou espalhafatosamente pela janela quaisquer certezas sobre a música capaz de furar essa película que mantém o mundo alternativo e o mainstream separados.

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FOTO: Rita Carmo

“Quem mais me influenciou na adolescência, a mim e a milhões de putos da minha idade, terão sido os Nirvana”, confessa, acrescentando o difícil que lhe foi aceitar como “uma música proscrita, quase uma reinvenção do punk rock, vendia milhões e era super-popular”. “Lembro-me de ficar chocado quando uma miúda que era minha vizinha e ouvia os Hit Parades e as músicas da telenovela apareceu com uma t-shirt dos Nirvana. Senti-me ofendido, por achar que aquilo era popular mas não devia ser, devia espelhar a teenager angst de que eles falavam e eu sentia – e quando não sentia queria fingir que sentia. Esta miúda que nunca tinha sangrado nem deslocado o maxilar num concerto, que autoridade tinha para usar aquela t-shirt?” Sabendo desde cedo que a popularidade era coisa que trazia desconfiança no encalço, não demorou a pacificar-se com a ideia de que, por vezes, aquela pode aliar-se à qualidade, sem que isso tenha de ser um acontecimento dramático ou uma hecatombe emocional.

A consciência dessa relação com as expectativas espevita também o gosto de Samuel Úria pela provocação e pela propensão em “sabotar um bocado” os seus discos. “O critério para compreender uma música, para gostar dela, para fazer juízos de valor tem de extravasar o conceito de expectativa.” Caso contrário, um músico estará a aplicar a sua criatividade dentro de um perímetro previamente estabelecido e fora do qual toda a canção será liminarmente taxada como falhanço. Úria quer o flirt com essa ideia de falhanço ou, talvez mais correcto, com a ideia de ser quem não devia ser. Ele sabe que tinha uma “certa aura alternativa” quando chegou a Lisboa, integrado na família ascensional da FlorCaveira – a que se juntou primeiro pelo comum amor a Dylan, só depois pela partilha do credo protestante baptista –, súbito caso de culto da pop cantada em português e que trocou as voltas ao que era foleiro (o português) e o que era cool (o inglês).

Duas estrelas

Com uma imagem de bardo alternativo, “quase um neo-messiânico do lo-fi” – como o próprio exagera –, Úria reconhece que, em adolescente, teria dificuldade em incluir num alinhamento um tema como Tapete (do último Carga de Ombro), por ser “pop-rock saltitante”. O jogo mudou, naturalmente, quando saltou das edições em CD-R na FlorCaveira e começou uma segunda discografia na NorteSul, a que logo no primeiro disco apensava uma declaração de intenções em que se dizia “preparado para ser criticado com duas estrelas nos jornais”. “Era uma coisa não só assumida como que até tinha vontade que acontecesse, para legitimar um esforço de não ser consensual ou de não ser só aquela pessoa que vai passar a vida toda a fazer música para corresponder a expectativas. Daí esse lado de sabotador, porque sinto por vezes vontade de incluir elementos foleiros em canções que não seriam foleiras se não houvesse essa tendência autodestrutiva.”

A partir dessa altura em que passou a gravar em estúdio, a mostrar-se em televisões e jornais, a actuar em salas cada vez menos esconsas e a emitir recibos verdes, emergiu uma grande diferença entre os dois períodos: “A grande diferença é que começo a ganhar dinheiro em vez de perder dinheiro com a música que faço.” Foi o fim das aulas de Educação Visual, o início de acreditar – coisa que sempre lhe parecera impossível – que tanto prazer na música não era, necessariamente, pecaminoso se permitisse também pagar as contas.

Há nesta consciência da música enquanto provedora de sustento uma saudável estranheza a que Samuel Úria não se escapa com uma qualquer pirueta. Pense-se em alguém que ganha a vida a subir a um palco, rodeado de pessoas que esperam por uma hora marcada para o ver aparecer e ouvir cantar sobre si, a sua vida e as suas ideias, mas fazendo-o de uma forma enviesada, deixando tantas pistas quanto armadilhas de compreensão, misturando até não ser perfeitamente entendível, e há nisto qualquer coisa a que Úria reconhece o ridículo. “É verdade que convencionalmente é aceite”, repara, “mas se pensar bem a minha profissão é um bocado inútil – sou um comentarista de mim próprio, parto das minhas ideias para fazer o meu trabalho e faço-o a cantar, em verso, com rimas mais ou menos estruturadas, mais ou menos regradas. Isto não cabe na cabeça de ninguém. Por outro lado, isso também me ajuda a viver com um espírito constante de gratidão”.

Em Samuel Úria, essa gratidão coabita com a ideia de que o reconhecimento que lhe bateu à porta é imerecido. Dizendo-se “um gajo estupidamente grato”, esperançoso de que isso mesmo transpareça nas canções e nos concertos, gosta que a sua honestidade e a sua intencionalidade não fiquem presas na rede das encriptações líricas e de banhar em pop assuntos que de pop nada têm. A tentativa de estar próximo das pessoas e de “manter os canais de gratidão sempre abertos”, diz, prende-se com a sua educação e a forte estruturação calvinista. Explicando: “Não se trata de viver subjugado pelo peso de não merecer as coisas que me chegam; é o contrário, é viver sob a alçada de uma graça, que não é merecida – e a graça, por definição, é um dom que não merecemos mas que nos é concedido – e que não quero perder. Se calhar graça e misericórdia estão juntas, porque acho que me estão a ser subtraídos fardos que talvez merecesse pelo espécime não especial que sou. Se há alguma coisa em que sou especial é mesmo sentir que não sou especial.”

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FOTO: Rita Carmo

Tudo isto está tão debaixo da pele que Samuel Úria não faz ideia a que soaria a sua música se assim não fosse. “Talvez não fizesse canções de todo, ou então seria só mais uma pessoa macambúzia, a escrever canções macambúzias e a mostrá-las ao vivo de uma forma muito macambúzia.” Graças a Deus, graças à Bíblia, graças a Armelim de Jesus (seu avô e figura de referência no protestantismo tondelense, homenageado no tema homónimo de O Grande Medo do Pequeno Mundo, de 2013), essa é uma palavra de pouca aplicação na sua música.

Sem gaveta

Na televisão, o Real Madrid acaba de marcar. O golo foi anulado por uma razão que não interessa – talvez um fora-de-jogo. O futebol, embora não se sente muito à mesa, surge na ideia de que, passem o exagero e a analogia um pouco manca, Samuel Úria se sente um pouco Leicester (clube inglês vencedor da Premier League esta época, quando há um ano andava a juntar forças para escapar à descida de divisão). A recepção entusiástica de O Grande Medo... havia de surpreendê-lo sobretudo no reconhecimento dos seus pares, vindo de gente para quem antes disso dificilmente se imaginaria a escrever – Clã, António Zambujo, Katia Guerreiro ou Ana Moura. “Em pouco tempo”, compara, “parece quase aquele jogador que está na quinta divisão e no ano seguinte está a ser campeão de Inglaterra por um clube que ninguém esperava que vencesse": "De repente estou a dar-me com jogadores da primeira divisão quando me habituei a fazer discos no campo pelado do distrital.” Há pouco tempo, Ana Moura revelou-lhe que Prince gostava muito de Cantiga de abrigo, tema que compôs para a fadista. Samuel Úria ainda não sabe o que se diz a isto.

Como não escreve canções para a gaveta, Úria só se atira à composição se tiver um disco para preparar ou uma encomenda de algum outro cantor a que responder. Quando é altura de cuidar dos seus álbuns, o período criativo não é muito distendido, por preferir que as canções partilhem uma ligação conceptual. Até chegar esse dia em que arregaça as mangas, não trabalha em canções avulsas, antes se dedica a acumular as milhentas referências que depois cospe em modo torrencial para cima da guitarra. Esse lado de escrita intensiva pode levar a que ande “a bater com a cabeça nas paredes”, mas não permite às canções que elas não surjam quando de facto precisa delas. “Se ficar pendurado a pensar que me falta uma ideia para concluir, uma palavra que não está a chegar”, descreve, “convenço-me de que ela vai aparecer a determinado momento, não desisto e acredito que vou ser recompensado com a palavra certa no momento certo". "É um bocado como os justos herdarem o céu.”

Fatalmente, esse método de composição leva a que cada álbum de Samuel Úria seja produto de um período temporal muito concreto. Coincidindo com algum acontecimento político fundamental, é certo que o mesmo acabará por desaguar nas canções. Mas falhando essa sincronia cronológica, a oportunidade parece irremediavelmente perdida. É disso exemplo o recente voto de condenação da perseguição política em Angola chumbado pelo Parlamento português, a propósito do julgamento dos 17 activistas que foram a julgamento acusados de planearem um golpe de estado (primeiro) e de malfeitoria (depois). “Se tivesse escrito o disco na altura da votação teria de pôr isso numa canção porque fiquei doente com o que se passou na Assembleia”, confessa. “Como não era altura de escrever canções, não saiu nenhuma. Mas teria saído.”

Aquilo que saiu em Carga de Ombro foi Repressão, tema em que Samuel Úria se refere ao policiamento constante entre cidadãos firmemente empenhados na reprovação moral dos outros como forma de auto-glorificação. “É uma coisa absolutamente nova – persegue-se a coolness por se ser moralista”, repara. “Hoje em dia tem-se a noção de justiceiros sociais como a expressão mais cool que se pode ter, a intervenção mais cool que se pode ter na sociedade. Os miúdos que antes se vestiam de góticos agora são os grandes panfletários, a malta que anda aí a fazer os piquetes por uma série de coisas.” Úria exemplifica o descontrolo deste paradigma contemporâneo com uma controvérsia recente: “No outro dia assisti a uma discussão gigante, de um grande racismo, acusando a Zoe Saldaña de ter a cara pintada de preto para fazer de Nina Simone. De repente, está a acusar-se uma actriz de não ser preta o suficiente, está a interpretar-se o racismo e a ser o mais racista possível nessa imputação.”

Por isso, insurgindo-se contra essas modas e esses zelosos polícias da moral, equipara-os ao “hipsterismo mais foleiro”. Aquilo que inquieta Samuel Úria é que a intencionalidade de cada gesto deixe de ser discutida, passe a ser apenas censurada, e que a liberdade e a moral se tornem lutas greco-romanas carregadas de acidez e condescendência (“a tua intenção é boa mas…”). Para um homem que sabe que um jota ou um til podem mudar o mundo, só pode ser triste assistir à palavra usada de forma belicosa. Saldaña, por exemplo, tem um muito hispânico til. E foi nesse til que fermentou a polémica.

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