Nídia dá-nos a volta à cabeça – e ao corpo

É uma das principais embaixadoras da editora Príncipe a nível internacional. Volta à carga com novo disco, Nídia É Má, Nídia É Fudida, onde consolida o seu psicadelismo polirrítmico com precisão, fervor e intuição. Há estranheza, e um desafio à dança.

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Com 20 anos, Nídia é um dos nomes mais internacionais da actual música de dança com carimbo nacional Marta Pina

Nídia não pára. Los Angeles, São Paulo, Ilha da Reunião, Berlim, Viena, Londres. “Já não me lembro de todos os sítios”, diz ao telefone a partir de Bordéus, onde vive, quando lhe perguntámos por onde tem andando em digressão.

Aconteceu tudo muito rápido. Poucos meses depois de ter lançado Danger, que oficializou a sua entrada na editora Príncipe em 2015, Nídia começou a correr mundo. Entretanto, muitos se renderam à sua música, que desvenda novos presentes e futuros para a batida, o kuduro e o tarraxo, simultaneamente capaz de semear estranheza e de tingir os corpos com um frenesim rítmico de alta voltagem. Passou por mecas da música electrónica, como o clube berlinense Berghain, por festivais de referência, como o Unsound, na Polónia, foi convidada para contribuir para o disco de remisturas de A Mulher do Fim do Mundo de Elza Soares, tal como DJ Marfox, colega de editora e “uma espécie de irmão mais velho”, e é presença regular na imprensa estrangeira especializada.

Hoje, com 20 anos, é um dos nomes mais internacionais da actual música de dança com carimbo nacional. E uma das principais embaixadoras da Príncipe, onde música de herança africana tem sido re-imaginada por uma série de afro-descendentes a partir dos bairros dos subúrbios de Lisboa, produtores e DJs com cada vez mais alcance e reconhecimento global. Nídia acaba de editar, em vinil e em CD, o seu primeiro álbum propriamente dito, Nídia É Má, Nídia É Fudida (o anterior é considerado um EP), na fornada de Verão da Príncipe, a par do disco homónimo dos Firma dos Txiga, projecto dos produtores K30, DJ NinOo e Puto Anderson.

Aconteceu tudo muito rápido, dizíamos. Mas Nídia não se importa. Foi fácil adaptar-se às tours intensas. “Tem sido um bocado cansativo mas eu gosto. Gosto de andar de um lado para o outro. Não quero estagnar”, confessa, com a voz a deixar transparecer o cansaço das últimas datas (tinha chegado há pouco de Londres, onde tocou numa noite do Boiler Room). Nídia já consegue viver da música, já tem “público fiel”, já não precisa de usar o sobrenome Minaj para se fazer ver – no início apresentava-se como Nídia Minaj, uma referência à rapper americana, na altura a sua diva. “Já não faz sentido, era uma fase mais adolescente. Agora já tenho a minha identidade. Basta Nídia”, afirma.

Aparentemente, muito mudou desde 2015. Mas Nídia não se deixa deslumbrar. “Os meus sets estão melhores, a qualidade dos meus beats também, mas de resto continuo a trabalhar como sempre trabalhei. Temos de melhorar para dar mais qualidade ao público, para subirmos ambos de patamar.” Dito isto, o título da música que abre o disco, Mulher profissional, parece ter sido feito à sua medida. As produções de Nídia transpiram determinação, e este arranque marca o passo do que se segue: postura aguerrida, a esculpir com precisão, fervor e intuição, o psicadelismo polirrítmico que nos dá a volta à cabeça. E ao corpo. Mulher profissional é baile-funk em atrofio digital, com a manipulação das vozes a servir tanto de batida como de descompressor.

Tal como no disco anterior, Nídia continua a driblar entre a funcionalidade e a disfuncionalidade rítmica, gerando novos sons, pregando rasteiras ao ritmo biológico dos corpos. Sempre em temas curtos, directos ao assunto, prontos para injectar adrenalina. Ouçamos (e tentemos dançar) o cinético Biotheke, tecido muscular num vaivém, como se estivéssemos a transitar entre as células do kuduro. Tudo isto poderia parecer trabalho de laboratório, mas não é. “Começo por fazer uma batida, depois a melodia e vou trabalhando nisso. É muito à base da sensação, não há propriamente uma lógica”, diz. “Tento sempre inventar melodias e batidas que nunca ouvi, tento sempre que saia algo de novo.”

A melodia (e a raiva)

Nídia É Má, Nídia É Fudida consolida as ideias que percorriam Danger, mas com mais trabalho de melodias. A isso não é alheio o uso de teclados, uma das recentes apostas da produtora – que, tal como tudo o resto, foi aprendendo a tocar por si própria. “As melodias, como as batidas, também têm de ser para dançar”, refere. Essa afirmação fica bem clara em Underground, batida meets house baleárico mergulhado em esteróides; em House musik dedo, diamante afro-house de melodias perfumadas, trunfo valioso em qualquer pista de dança; ou em I Miss My Ghetto, onde a melancolia do teclado flui entre as batidas crocantes, sincopadas e espasmódicas.

Esta última canção é uma homenagem ao Vale da Amoreira, na margem sul do Tejo, onde Nídia cresceu e para onde vai voltar em breve – pelo menos durantes uns tempos, enquanto estiver a tirar o curso de enfermagem em Lisboa. “Foi o bairro que me viu crescer e a dar os primeiros passos até hoje. Essas memórias são importantes para a minha música, até porque lá ouve-se muita batida”, diz a DJ, que começou a criar uma relação séria com o kuduro logo na escola primária, quando formou uma crew de dança só de raparigas, as Kaninas Squad. Foi também no Vale da Amoreira que surgiu o título deste novo disco. “Foi numa loucura entre amigas. Estávamos a ouvir batida, eu estava a meter alguns beats e uma amiga minha estava a cantar, a fazer freestyle, e saiu-se com o ‘Nídia é má, Nídia é fudida’.”

Dependente ou independentemente do título, a música de Nídia tem também um lado mais perfurante, mais sombrio. Passemos por É da banda, dadaísmo para fantasmagorias em quarto escuro, prova da complexidade rítmica singular que vai na cabeça da produtora. Por Puro tarraxo, tarraxo mutante, rugoso e peganhento, com sintetizador serpenteante e batida saltitante que nos cercam sem grandes hipóteses de fuga – neste disco, Nídia joga mais com os padrões de repetição e colisão. Ou mesmo pela magnífica Sinistro, uma das três músicas que vêm como bónus na edição em CD. Um momento enigmático de desaceleração entre a névoa, percussão libidinosa que arde em fogo lento.

E também há a raiva como motor. “Fiz a Arme no aeroporto de Lisboa. Estava com raiva, enervada, porque o meu voo estava atrasado umas cinco horas”, conta Nídia. “Quando ouço essa música penso numa guerra.” É como entrar numa distopia habitada por sintetizadores-agulha, que tem como companheira uma das faixas bónus, Shane Noah, techno-kuduro aniquilador e atordoante, com um ataque de beats que nos atira imediatamente para um videojogo onde está tudo aos tiros. “Eu enervo-me rápido e se calhar isso acaba por se reflectir na minha música”, aponta Nídia. “O preconceito” é das coisas que mais a irrita. “A homofobia, o machismo, o racismo, que agora está pior aqui em França também por causa da Marine Le Pen… Eu tento não ter tabus, tento ser o mais aberta possível. A tudo, mesmo. Cada pessoa deve viver como quer, não como a sociedade pensa que ela deve viver.”

De resto, o que Nídia quer para si própria é continuar a fazer música. “Só quero que as pessoas comprem o meu disco e que continuem a aparecer nos meus DJ sets”, diz. “Vou dar sempre o meu melhor.” As próximas datas incluem passagens por Bruxelas, Berlim, Madrid e Lisboa (ZDB a 23 de Setembro, na noite BRAVE). O futuro, esse, é ir andando e ir vendo, mas sempre ao lado da Príncipe. “Somos uma família. Família não se separa.”

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