Nick Cave agarra-nos à vida depois da morte do filho

O novo álbum de Nick Cave, Skeleton Tree, é um poderoso testemunho e um disco assombroso, sobre o qual paira a morte do seu filho. Já podemos ouvi-lo.

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Um antes e um depois, uma incisão, um corte. Nick Cave fala disso às tantas no documentário One More Time With Feeling. Alguns de nós já passaram por isso. Um acidente grave. Uma separação dolorosa. A perda do emprego. Ou a perda de um filho.

Um acontecimento traumático. Um momento que sinaliza um antes e depois e que a partir dali ficará inevitavelmente ligado à forma como nos contamos. Cave chama-lhe “tempo elástico” no documentário. Qualquer coisa que não impede que a vida continue mas que será omnipresente, como se tudo o que acontecesse a partir daí constituísse um eco dessa circunstância.

Um dos filhos de Cave, Arthur, de 15 anos, morreu no ano passado ao cair de um penhasco em Brigthon, onde a família vive. E inevitavelmente o seu novo álbum, Skeleton Tree, é marcado por essa ocorrência. Às vezes de forma directa, outras de maneira alegórica. O documentário, mostrado numa exibição única esta quinta-feira em todo o mundo – depois de ter sido estreado na terça-feira no Festival de Veneza –, foi uma forma de Cave se proteger da impetuosidade mediática.

É compreensível. Foi uma forma de preservação. Talvez também de controlo, embora fique a ideia no documentário de que o processo acabou por ultrapassá-lo e, a partir de determinada altura, todas as barreiras foram abolidas, com ele a assumir que no passado se recusaria a falar de si daquela forma. Claro que existe pudor e, na fase inicial, distanciamento. Mas nunca se havia visto Cave assim.

Quem já o entrevistou sabe que é austero, que não gosta de falar da sua privacidade e que é até um conversador relutante na forma como tenta explicitar o trabalho a partir de si. Claro que há uma dimensão autobiográfica em tudo o que compõe ou escreve – existe sempre em qualquer criação –, mas até agora podia permitir-se ocultar-se nas suas máscaras (anjo, demónio, apocalíptico, na sarjeta da vida ou revigorado para ela) ou nos grandes temas que sempre fizeram parte da sua lírica: vida, morte, religião, amor, sonhos. Podia partir de si para a universalidade.

Agora dir-se-ia que por mais que tente ser Outro, nunca conseguirá sê-lo, até porque o nosso olhar não o deixaria, contaminado pelo contexto. E por isso o vemos, a nu, só, a ele. Ou assim julgamos. E é uma experiência assombrosa, comovedora, dramática como é evidente, mas também bela e esperançosa. Há uns anos, em entrevista, dizia-nos que lhe agradava sentir-se dividido “entre ser maduro e não querer deixar de ser adolescente.” No seu 16.º álbum de estúdio não há essa opção.

Há apenas um homem à volta com o seu luto, o choque, as dúvidas, a desintegração. As sessões de gravação terão começado antes da morte do filho, e algumas letras já teriam sido escritas então, mas as sugestões, a sonoridade sombreada e a veemência emocional da interpretação são todas elas contaminadas pela perda.

É justo dizer que não é apenas uma obra fruto das circunstâncias. O Cave dos últimos anos já apontava para aqui. Talvez se possa ir mesmo mais longe. Os seus últimos anos foram possivelmente os seus melhores, tanto quando é sóbrio e introspectivo, como quando é visceral e parte para a catarse colectiva. E nitidamente, do ponto de vista sonoro, existe um homem importante nesta história: Warren Ellis, o seu colaborador de longa data nos Bad Seeds ou nos Grinderman, que entendeu que a sua interpretação vulnerável necessitava de repousar quase sempre num nebuloso manto atmosférico.  

A abertura com Jesus alone institui o clima, com a voz majestosa de Cave, a cantar “with my voice I am calling you”, pairando sobre uma sonoridade rugosa, industrial e sombria, enquanto Rings of saturn introduz um pouco mais de musicalidade, para desembocarmos na solene balada Girl in amber, a voz a tornar-se pesada, sublinhada pelo piano e por palavras ditas de forma lenta e amargurada. A maior parte das canções do álbum é assim. Não existem crescendos ou sugestões épicas. É o espaço entre as notas e as subtis alusões instrumentais que criam a intensidade para a interpretação vocal sobressair.

Às vezes parece que apenas sentimos a sua respiração, como em Magneto, com a voz a serpentear, errante e vagarosamente, o mesmo sucedendo na devastadoramente bela I need you, em que a música repetitiva e o coro gospel impõem uma aura religiosa e ele a cantar de maneira quase trémula: “Nothing really mattersWhen the one you love is gone/ I need youYou’re walking’ round my place/ in your red dresshair hanging down…/ I’ll miss you when you’re gone/ I’ll miss you when you’re gone away forever…/ Just breathe, just breathe / I need you”.  

Em Distant sky, talvez o pico emocional do disco, um som celestial envolve as vozes de Cave e Else Torp enquanto as palavras saem precisas: “Let us go now, my only companion/ Set out for the distant skiesSoon the children will be rising, will be rising/ This is not for our eyes.“ A envolvente balada final, Skeleton tree, parece querer funcionar como apaziguamento, até onde isso é possível, terminando com as palavras “And it’s all right now”.

Dir-se-ia que depois da morte do filho ele se agarrou à vida, agarrando-nos a nós, da única forma que sabe, fazendo canções. É fácil dizer que é uma obra de superação da dor ou de catarse. O que sabemos é que é o álbum de alguém a procurar dar sentido à vida – tacteando as palavras ou a narrativa que o possam guiar nessa direcção – de uma forma complexa, errante, verdadeira, sabendo que nesse processo homem e artista mudaram para sempre, mas não existe Deus, nem salvação, nem ciência, nem explicação, nem promessa de finais felizes por aqui. Há apenas um homem e a sua tragédia.

A agonia de alguém que sente que existem coisas que nunca perceberemos. E é isso. Por vezes não há explicações. Há apenas o aceitar da confusão e a dor da incompreensão, mas também nesse movimento a possibilidade da empatia, o amor, o princípio da humildade de estar vivo. Que tudo isso esteja inscrito nesta obra de música – tantas vezes a arte do indizível –, eis o que faz dela um testemunho poderoso e um álbum absolutamente comovente.

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