Neste estúdio de fotografia de Bamako, África era feliz

Malick Sidibé (1935-2016) era um dos históricos da fotografia. No seu estúdio, África não era o continente da fome e da miséria - era jovem, alegre e dançava. Morreu quinta-feira, aos 80 anos. Não era à toa que lhe chamavam “O Olho de Bamako”.

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Malick Sidibé Sérgio Azenha
<i>Nuit de Noel, Happy Club</i>, 1963, é uma das fotografias mais conhecidas de Malick Sidibé
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Nuit de Noel, Happy Club, 1963, é uma das fotografias mais conhecidas de Malick Sidibé Malick Sidibé
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Malick Sidibé/Jack Shainman Gallery
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Toute la famille en moto, de 1974 Malick Sidibé/Mariane Ibrahim Gallery
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Vues de dos , de 1999 Malick Sidibé/Mariane Ibrahim Gallery

António Pinto Ribeiro, programador cultural que conhece bem a arte contemporânea e a fotografia africanas, guarda na memória o dia em que esteve no estúdio de Malick Sidibé, na capital do Mali, Bamako. Havia muita gente à espera de vez para entrar naquele pequeno espaço – não mais do 12 metros quadrados – onde tudo era encenado, do tecido que se ia usar como pano de fundo, à pose que o retratado, “tratado com a maior delicadeza”, devia ensaiar. “E ele sorria, sorria muito, numa atitude contagiante”, lembra este comissário, no dia em que se noticiou que o fotógrafo maliano tinha morrido, aos 80 anos (não se sabe a data ao certo, embora o diário francês Le Monde avance quinta-feira, 14 de Abril). Foi um dos seus sobrinhos, Oumar, quem deu a notícia.

Malick Sidibé aparece sempre na lista dos fotógrafos africanos históricos, com nomes como Ricardo Rangel (Moçambique), David Goldblatt (África do Sul) e Seydou Keïta (também do Mali). “Ele fez parte de uma geração que usou a fotografia para mostrar que África estava a mudar”, diz Pinto Ribeiro ao PÚBLICO. “E isto numa atitude muito séria, empenhada. Ele é um dos históricos da fotografia africana  – eu diria mesmo mundial – não só pelas imagens que criou, mas pela imagem que deu do continente em que nasceu e trabalhou.”

O fotógrafo, que começa a trabalhar por conta própria no início da década de 1960, num estúdio de bairro que ainda se mantém e que fazia, numa primeira fase, fotografias tipo passe para os bilhetes de identidade, marcou decisivamente um período que coincide com o advento das independências africanas. “Ele apercebe-se, e faz por acompanhar, com grande originalidade, essa ebulição. Está perfeitamente consciente de que a sua fotografia produz uma imagem completamente diferente de África, uma imagem que se distancia daquela que, durante décadas, foi promovida pelas nações colonizadoras”, explica Pinto Ribeiro, que com o Programa Próximo Futuro, que dirigiu na Gulbenkian, tantas vezes, e sob tantas formas, reflectiu sobre a produção artística e literária contemporânea africana.

Os decisivos anos 60

Nascido em 1935 (ou 1936) em Soloba, uma aldeia hoje a 170 km da capital (na altura a região pertencia ao Sudão francês), num meio completamente rural, começou a guardar o rebanho da família aos cinco anos e, por isso, só entrou na “escola branca” aos 10. Foi aí que se destacou pelos seus dotes para o desenho, que mais tarde viriam a ser muito úteis na composição em estúdio. Depois de estudar na Escola de Artesãos Sudaneses de Bamako, para onde entrou em 1952, por indicação do governador colonial, Sidibé tornou-se aprendiz de Gérard Guillat-Guignard, que fotografava as elites locais e era conhecido pela deliciosa alcunha “Gégé la pellicule” (qualquer coisa como ‘Gégé o filme’), até criar o seu estúdio em 1962, quando o Mali se tornou independente. Foi nessa altura que começaram a chamar-lhe “O Olho de Bamako”.

Tivera a sua primeira câmara seis anos antes, uma Brownie, pequena e leve, ideal para quem fotografa em bailes e outras festas, actividade a que se dedica intensamente nos anos 1960. Guillat-Guignard, dizia, não o ensinou a fotografar, mas vê-lo em acção fez com que Sidibé aprendesse muito. E fosse capaz de criar a sua própria maneira de captar a realidade, ainda que em alguns dos seus trabalhos se sinta a presença de outro grande retratista do Mali, Seydou Keïta (1921-2001).
Já a trabalhar por conta própria, Sidibé rapidamente se torna uma figura popular na vida cultural do Mali. Não é de estranhar, já que se especializa em fotografar casamentos e outras festas e bailes que se prolongam pela noite dentro, muitos deles até depois do nascer do sol, nas margens do rio Níger. Neles os jovens partilhavam a música e a dança vindas dos Estados Unidos, da Europa e de Cuba. O rock e o twist, as modas de Paris. Neles se dava uma outra imagem de África – calorosa, alegre, moderna – que este maliano ajuda a moldar, a fixar. E que depois replica em estúdio, sobretudo na década seguinte, em retratos individuais e colectivos que reflectem, mais do que uma opção estética, uma posição política.

Dizem críticos e comissários que uma das imagens que melhor resume a fotografia de Malick Sidibé mostra um casal a dançar numa festa de Natal (Nuit de Noel, Happy Club, 1963). Está impecavelmente vestido – ele de fato branco, ela de vestido rodado e descalça -, de olhos postos no chão, ambos com um sorriso tímido. Aquele momento antecipa, certamente, qualquer coisa (o quê deixou Sidibé à imaginação de cada um de nós).

Nas suas fotografias, todas a preto e branco, há a mesma energia, a mesma cumplicidade deste casal que atravessa um período de grandes mudanças sociais e culturais. Estava a entrar-se numa nova era, diz o fotógrafo numa entrevista ao britânico The Guardian, em 2010: “A música libertou-nos. De repente os rapazes podiam aproximar-se nas raparigas e dar-lhes a mão. Antes isso não era permitido. Toda a gente queria ser fotografado a dançar juntinho.”

O seu estúdio, lembrou ainda ao diário, era um espaço descontraído, onde trabalhava muitas vezes até às seis da manhã (chegava a ampliar 400 fotografias) depois de numa noite de fim-de-semana percorrer cinco ou seis festas. “As pessoas apareciam, ficavam, comiam. Eu dormia no quarto onde revelava. Apareciam para posar nas suas Vespas, para mostrar os seus chapéus novos, as calças, as jóias, os óculos de sol. Estar bonito era tudo. Todos tinham de ter a última moda de Paris. Nós nunca tínhamos usado meias e, de repente, todos estavam orgulhosos das suas.”

Descoberta tardia

A África de Sidibé, a que via ou queria ver como sendo a África das independências, era feita destes “jovens festivos, alegria, movimento e sensualidade”, sublinha António Pinto Ribeiro. Uma África em festa que fotografa tornando evidente “uma relação especial com os corpos” que vão absorvendo tudo o que chega de fora.

Diz Pinto Ribeiro que, mesmo depois do reconhecimento internacional, com exposições na Fundação Cartier e no Grand Palais, em Paris, no Stedelijk de Amesterdão, ou no Museu de Arte Contemporânea de Chicago, Sidibé, que mostrou o seu trabalho também em Coimbra e Lisboa, manteve a sua rotina. Ia de manhã para o estúdio para fotografar – passava a maior parte do tempo, no entanto, a conversar com os amigos que sempre o visitavam , ficava à espera que uma das suas mulheres lhe levasse o almoço, e continuava a trabalhar, “com muita calma”, pela tarde fora.

Até poder – pouco a pouco a doença instalou-se, embora a causa de morte varie de obituário para obituário, sendo nuns a diabetes, noutros o cancro – trabalhou neste bairro popular de Bamako.  “Malick Sidibé ‘sai’ duas vezes do estúdio – a primeira na década de 1960, para fotografar a tal euforia nocturna nas lambretas que cruzam a cidade; na segunda quando Obama é eleito Presidente dos Estados Unidos. São dois momentos de grande frenesim.” E de esperança. “São dois momentos de ruptura. E ele dá-se bem nesse ambiente. Ele mesmo provoca uma ruptura quando contraria a representação da África esfomeada e doente, quando rejeita os modelos europeus, coloniais, no retrato – os que representam o modelo estático, com o corpo a três quartos”, explica Pinto Ribeiro.

No final dos anos 1990, quando começa a sua série de mulheres fotografadas de costas, “uma provocação”,  volta a romper com o retrato tradicional. De recordar que é nesta década que a fotografia internacional descobre Malick Sidibé e Seydou Keïta, que era quase 15 anos mais velho. “Uma descoberta tardia, que cativa de imediato europeus e americanos.” E que é feita a par da que acontece na cena musical, com Salif Keita e Ali Farka Touré a ganharem reconhecimento internacional. Hoje Sidibé está representado em muitas colecções privadas e públicas de prestígio, como a do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) e a do J. Paul Getty, em Los Angeles.

Na lista dos prémios que recebeu merecem destaque o Hasselblad (2003) – um dos mais prestigiados do mundo, já atribuído a nomes como Henri Cartier-Bresson, Irving Penn, Robert Frank e Sophie Calle -; o do International Center of Photography (2008) o PhotoEspaña-Beaume & Mercier (2009); e um World Press Photo (2010) na secção Arte e Entretenimento por uma sessão de moda para o diário norte-americano The New York Times. Em 2007, Sidibé tornou-se o primeiro fotógrafo – e o primeiro africano – a ganhar o Leão de Ouro da Bienal de Veneza. “Nenhum outro artista africano fez mais por valorizar o estatuto da fotografia na região, contribuindo para a sua história, o seu arquivo de imagem e para dar conta das texturas e das transformações da cultura africana na segunda metade do século XX e no começo do XXI do que Malick Sidibé”, afirmou na altura o seu director artístico, Robert Storr.

Para se fotografar, dizia Malick Sidibé, é preciso saber olhar, saber o que se quer e conseguir pôr as pessoas às vontade. “Sorrir está na minha natureza. Tenho sorte.”

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