Neste cruzamento de músicos, países e línguas nasceu um novo ser: Sélébéyone

Steve Lehman, saxofonista que se destaca como um dos nomes mais entusiasmantes do jazz contemporâneo, traz ao Jazz em Agosto a sua nova aventura. Música síntese entre jazz, hip hop e electrónica experimental. Música que muito faz mais. Esta sexta-feira às 21h30

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Em palco estará Sélébéyone, música síntese entre jazz, hip hop e electrónica experimentais criada por um septeto de que Steve Lehman é o líder Andrea Boccalini

Steve Lehman já esteve neste festival. Aconteceu quando o século XXI estava a dar os primeiros passos, tinha Steve Lehman pouco mais de 20 anos. “Não foi o primeiro, mas foi um dos primeiros grandes festivais em que toquei”, recorda o saxofonista e compositor. Na altura, chegou a Portugal integrado no Anthony Braxton Ensemble. Esta sexta-feira, no Anfiteatro ao Ar Livre da Gulbenkian, veremos um Steve Lehman necessariamente diferente protagonizar o concerto de abertura do 34.º Jazz em Agosto.

O talento e a curiosidade perante outras linguagens musicais mantém-se o mesmo, mas Lehman é agora o líder de um combo que representa na perfeição o seu olhar abrangente e o seu desejo de honrar o jazz como expressão omnívora e desejosa de mundo. Em palco, a partir das 21h30, estará Sélébéyone, música síntese entre jazz, hip hop e electrónica experimentais criada por um septeto onde se incluem dois MCs, o americano HPrizm (fundador dos Anti Pop Consortium, há 20 anos a criar hip hop vanguardista) e Gaston Bandimic (figura de destaque no hip hop senegalês), ou Maciek Lassere, antigo aluno de Lehman que aqui partilha com ele a composição – completam a banda Carlos Homs (teclados), Chris Tordini (baixo eléctrico) e Damion Reid (bateria).

Sélébéyone é uma expressão wolof, a língua do povo que se distribui pelo Senegal, Mauritânia e a Gâmbia. Significa algo como “intersecção”, ou, numa leitura mais aprofundada, o terreno onde duas entidades se encontram e fundem numa nova. É uma escolha feliz para designar aquilo que ouvimos no disco com o mesmo título editado em Agosto de 2016. Feliz, mas incompleta. Isto porque nasce de ligações íntimas e longas entre os vários membros do grupo – por exemplo, Lehman e HPrizm colaboram há uma década e Maciek Lassere tem trabalho desenvolvido com rappers que, em França ou no Senegal, têm no wolof a sua língua. Há outro dado importante, a ligação que o hip hop construiu com o jazz desde os seus primórdios e a curiosidade que vários músicos jazz, recordamos gigantes como Miles Davis e Max Roach, recordamos um álbum como Antipop Consortium Vs. Matthew Shipp, demonstraram pela linguagem musical nascida em Nova Iorque (ver textos nestas páginas).

“A colaboração independentemente de género musical ou localização geográfica tem uma longa tradição na história do jazz e estou muito consciente dela”, diz Steve Lehman desde a Noruega, poucos dias depois de ter actuado no Molde Jazz. “Penso no Scott Joplin a compor óperas, no Charlie Parker a dizer em entrevistas que quer estudar no Conservatório de Paris com Edgar Varèse, em John Coltrane a estudar música indiana – e isso é apenas a ponta do icebergue. Mesmo na história mais canónica, não se pode falar de jazz sem estar consciente deste envolvimento desejado com música de todo o mundo”, recorda.

Sélébéyone é um disco surpreendente. Aqui, a instrumentação acústica, a matéria samplada e a produção electrónica conjugam-se até à indefinição, aqui, o andamento compassado de Laamb, a canção de abertura, em cor de nocturno cinematográfico, acolhe quatro discursos – o dos saxes de Lehman e de Lassere, o do wolof de Gaston Bandimic e o do inglês de HPrizm. O mesmo com Are you in peace e os seus saxofones em voo picado sobre o ritmo quebrado e o groove do contrabaixo, utilizados com agilidade pelos MCs de serviço. Música síntese, verdadeiramente. 

Tornar mais vasto o universo

Longe vão os tempos em que Steve Lehman aterrou na Europa para mostrar a sua música no continente pela primeira vez. Estávamos em 2003 e a responsabilidade foi da editora lisboeta Clean Feed. “Fizeram muito para apoiar a minha música, defendendo-a quando quase mais ninguém o fazia na Europa”, conta. Foi na Clean Feed que editou Interface, com o Camouflage Trio (2004), ou Manifold, registo de uma actuação do seu quarteto no Jazz ao Centro, em Coimbra (2007).

Quando o virmos no Anfiteatro a tocar o sax e a manipular toda a componente electrónica nos Sélébéyone (sábado, dia 29, às 18h30, dará um concerto solo), teremos perante nós um músico com um estatuto diferente. Mise en Abîme, o antecessor de Sélébéyone, gravado com o seu octeto, foi distinguido no Ípsilon (e na NPR, e no Los Angeles Times) como melhor álbum jazz de 2014 e, no ano seguinte, a Downbeat elegeu Lehman como o maior talento emergente no universo do jazz. No seu trabalho convivem as colaborações com Anthony Braxton ou Vjay Iyer, as obras de música de câmara, os estudos em volta da música electrónica e as colaborações com ensembles de música contemporânea. É neste contexto vasto que devemos ler aquilo que nos apresenta agora. Sélébéyone é Steve Lehman a continuar a alargar o seu universo – nunca antes trabalhara com vocalistas, por exemplo.

Primeiro, Maciek Lassere alertou Lehman para a cena hip hop em wolof e este descobriu, entusiasmado, “sons verdadeiramente novos” que quis integrar no seu universo musical. Não o fez sem antes contactar o amigo HPrizm. Maciek, por sua vez, trouxe Gaston Bandimic. Um a um, chegaram os restantes músicos. Juntaram-se sem qualquer linha condutora. “Havia um terreno comum, em termos estéticos, entre mim e o Maciek. E concluímos que os letristas hip hop para os quais nos sentíamos atraídos não abordam questões mais materiais. Lidam antes com aspectos conceptuais, quer sejam a espiritualidade e a descoberta interior, quer seja a vivência nos contextos urbanos que habitamos” – o facto de tanto HPrizm como Bandimic e Maciek serem seguidores do ramo Sufi do Islão acentuou essa tónica numa componente espiritual.

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O talento e a curiosidade perante outras linguagens mantém-se o mesmo, mas Lehman é agora o líder de um combo que representa o seu desejo de honrar o jazz como expressão omnívora e desejosa de mundo Willie Davis

O trabalho começou pela composição e criação dos elementos musicais e electrónicos, que eram depois apresentados e trabalhados com os MCs até atingiriam o estado finalizado. Estes, por seu lado, afinavam e complementavam o discurso que partilham nas canções, encontrando pontes comuns entre o wolof e o inglês. Essa compreensão mútua que se foi estabelecendo entre os dois MCs serve de boa ilustração daquilo que foi e que tem sido o trabalho conjunto da banda. Uma descoberta que se faz olhos nos olhos e que se aprofunda até se tornar linguagem partilhada. “O factor mais importante, no que diz respeito a tradições de composições musicais, é que todas são praticadas por comunidades de seres humanos. É completamente diferente ter John Coltrane, Wu-Tang Clan ou Pierre Boulez no computador ou estar frente a frente com um rapper, um DJ ou um músico de jazz e perguntares a ti mesmo: ‘o que vamos fazer para criar música juntos?’”.

Em retrospectiva, álbum criado, Lehman destaca aquela que poderá ser a maior contribuição de Sélébéyone para a relação frutuosa entre o jazz e o hip hop. “Do que tenho conhecimento, esta será a primeira vez que a música composta para instrumentos acústicos, as estruturas para improvisadores, e o trabalho com electrónica, os samples ou a programação dos ritmos, foi feito pela mesma pessoa”, refere. “Normalmente, há uma divisão de trabalho implícita, como no álbum de Matthew Shipp com os Antipop Consortium ou no trabalho do [saxofonista] Steve Coleman com músicos hip hop. Criaram música incrível, mas ouve-se essa divisão binária na forma como trabalhavam”. Em Sélébéyone, “não há a sensação de que os samples são colocados sobre a música, mas antes que tudo está integrado nas estruturas de composição”.

Em concerto, esperamos testemunhar exactamente. E veremos também algo simbólico, tendo em conta os tempos que atravessamos, infectados de isolacionismos e de tentações xenófobas cobardemente disfarçadas ou tristemente explícitas. Essa denúncia está presente nos versos rappados – dos Estados Unidos ao Médio Oriente – e a própria banda, na sua formação, surge como desafio perante essa visão pequena do mundo. “Não falámos de nenhum desses temas enquanto compúnhamos o disco, não decidimos que seria um disco político, mas ele é resultado da forma como, enquanto artistas, olhamos para a música e para a criatividade”, diz Steve Lehman. “Não nos interessam barreiras entre países, religiões ou línguas, e o contexto histórico em que o álbum foi gravado acentuou-o. Somos americanos, europeus, africanos. Somos muçulmanos e eu, embora não praticante, tenho raízes judaicas. Tendo em conta o que está a acontecer nos Estados Unidos e no resto do mundo, isso emerge e tem eco nas pessoas, por surgir em forte contraste com ideias isolacionistas”.

Sélébéyone, recordamos, significa intersecção. O encontro num cruzamento onde se assiste ao nascimento de uma nova entidade. Fazer mais do muito que temos. É realmente um nome feliz.

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