Narrar a nossa própria vida pode ser um acto de luxúria

Depois de um longo bloqueio criativo, o norueguês Karl Ove Knausgård meteu mãos a uma empreitada monumental, um romance em seis volumes, A Minha Luta. Escreveu-o para descobrir onde tinha errado na vida. E salvou-se. A Morte do Pai é o primeiro volume dessa obra complexa e ambiciosa.

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É um dos acontecimentos literários do ano: a publicação pela editora Relógio D’Água do primeiro dos seis volumes (A Morte do Pai) que compõem o romance A Minha Luta, do escritor norueguês Karl Ove Knausgård (n. 1968).

Em cerca de 3500 páginas, num jogo de espelhos auto-referencial, ele entrega-se a uma exploração proustiana do seu passado, recuperando memórias em que a realidade e a ficção se confundem. Forçando a comparação com a monumental obra de Proust, o sabor da madalena do escritor francês pode ser substituído pelo hábito involuntário de “ver” rostos na aleatoriedade das ondas do mar ou nas nervuras da madeira do soalho. É um episódio deste tipo, ocorrido num momento preciso da sua infância, que desencadeia a narração. Ao longo da meia dúzia de volumes, Knausgård não hesita em expor-se sem pudor, bem como à sua família (alguns familiares intentaram acções judiciais para proibirem a publicação dos livros, outros pediram que os seus nomes fossem trocados, no final todos cortaram logo relações com ele), o que foi a causa, em vários países, de intensas discussões sobre os limites éticos da literatura. Knausgård sempre respondeu: “Eu só queria contar a história do meu pai, e disso ninguém me pode impedir. Nem ele, que já está morto. A família fez parte dessa história.”

O volume agora publicado, a par de longas reflexões sobre a arte, a vida, a morte e o álcool, narra parte da infância e da conturbada adolescência do escritor: a relação com o irmão mais velho, os dias vazios nos subúrbios, os primeiros amores, a ausência da mãe, e tem como episódio central a morte do pai – um professor frio e autoritário, que se tornou alcoólatra ainda bastante novo, cujo declínio e autodestruição ele acompanha, e de quem faz um retrato bastante cruel. Mas ninguém na família foi poupado, nem a avó paterna, que sofria de demência senil e de incontinência urinária.

Habilmente composto, com descrições minuciosas, escrito de maneira ágil e precisa, a publicação do primeiro volume em português foi o motivo que levou o Ípsilon à conversa com o autor em Lillehammer, na Noruega, durante o mais importante festival literário da Escandinávia.

Como surgiu a ideia de escrever A Minha Luta, “um romance em seis volumes” – como faz questão de notar?
Não planeei nada. Eu estava há quatro ou cinco anos a tentar escrever o meu terceiro romance, que seria acerca do meu pai. Mas não lhe conseguia apanhar o tom, como dizem os músicos. Estava desesperado. Tentava todos os dias, e em todos falhava, isto durante quatro ou cinco anos. Não conseguia escrever um romance normal. De repente, pensei: que se lixe a ficção, que se lixe isto tudo, vou contar as coisas tal como são. Comecei a escrever de maneira bastante confessional, contando e descrevendo acontecimentos íntimos, entrando numa intimidade que os romancistas costumam deixar de fora. Estava a transgredir um tabu, e isso agradou-me. E então tudo começou. Depois de ter o primeiro livro escrito, finalmente sobre o meu pai, sobre a morte dele, achei que conseguiria ir mais longe e comecei a transformar a linguagem do dia-a-dia numa coisa mais literária, mais romanceada. O segundo livro é sobre o contrário da morte, sobre quando me apaixonei e as dificuldades dessa relação. Os livros seguintes foram a continuação da narrativa da minha vida.

Não sentiu pudor de se expor de uma maneira tão crua?
Narrar a nossa própria vida pode ser um acto de luxúria. E, como acontece com toda a luxúria, também os sentimentos de culpa e de vergonha acompanham essa escrita. Eu senti isso, mas não o suficiente para me fazer parar [risos]… Há qualquer coisa de libertador no acto de escrever. Parece que tudo se torna menos complexo. Sou incapaz de falar da minha vida sexual, por exemplo, mas consigo escrever sobre ela. Quando o faço não é apenas o pudor que desaparece, é também a sensação de perigo que isso pode trazer. Mesmo estando a expor-me, não sinto que o esteja a fazer. O realismo que usei foi um método para atingir algo.

O que é que pretendia atingir?
Quis tentar chegar ao âmago das coisas, ao centro que lhes dá sentido, e descrevê-las como creio que elas são. A velocidade da escrita foi também a chave para esse processo. Sei que não vou tornar a escrever assim. E se um dia voltar a escrever terá de ser algo completamente diferente. Escrever tem de ser sempre uma viagem até um lugar desconhecido.

É por isso que descreve os factos como eles de facto aconteceram em vez de lhes dar uma roupagem ficcional? Porque não mudou os nomes, por exemplo?
Queria escrever uma coisa autêntica, ser muito específico, contar aquele facto que ocorreu naquele exacto momento. Isso era para mim a coisa mais importante. Os nomes são o que temos de mais específico. Eu quis explorar até ao pormenor a minha própria vida. Havia também uma sensação de desafio, se seria possível eu escrever assim sobre factos reais.

Mas olha para ele como um romance. Quanta ficção há nestes livros?
Muita coisa: as descrições até ao detalhe, o que as pessoas dizem, os diálogos – obviamente que não me lembro do que as pessoas disseram há anos. O que fiz foi pensar naquelas pessoas e pensar no que elas poderiam ter dito naquelas situações. É uma falsidade realista. Mas tudo o que acontece nos seis livros aconteceu na vida real tal como o descrevo. Mas isso acaba por me interessar apenas a mim.

É um romance sobre a memória?
De certa maneira sim. Mas descobri que é também sobre como a memória pode torcer a realidade. E como nos pode dar um novo alento à vida. Quando comecei a escrever, a única coisa que me interessava era descobrir como me tinha tornado na pessoa que era. Como construí a minha identidade. Fiz uma espécie de investigação existencial. Tinha a ideia, e continuo a ter, de que nós não temos no momento presente consciência do ‘aqui’ e do ‘agora’. Como se o mundo desaparecesse no momento em que o vivemos. Por isso achei importante contar tudo de maneira tão minuciosa, para que não perdesse aqueles ‘aqui’ e ‘agora’. Como se quisesse tornar de novo presente aquele mundo que vivi. Escrevi para descobrir onde tinha errado na vida.

A minúcia e a atenção ao pormenor ajudaram-no a reaver memórias que julgava perdidas?
Contar tudo ao pormenor foi uma maneira de me manter vivo e de, através das palavras, ressuscitar pessoas que amei. Enquanto descrevemos de maneira minuciosa uma coisa, estamos muitas vezes a percepcionar outras por trás. E por detrás dessas, ainda outras. É assim que tudo me chega. A memória como se fosse composta por camadas. É um pouco como na psicanálise. Quando escrevo uso a intuição, não penso.

De facto as descrições pormenorizadíssimas de acontecimentos familiares, de objectos de uso diário, de situações banais, são um dos aspectos mais impressionantes da sua obra.
A magia da arte, a magia da escrita, está em dar sentido e forma aos aspectos mais prosaicos da vida. Descrevê-los pode trazer uma nova alegria de viver. Um acto de rotina, como seja mudar as fraldas de um filho, pode tornar-se numa coisa esplendorosa se o escrevermos… Ler os grandes autores e depois acabar a escrever sobre fraldas é vergonhoso, é quase indigno [risos]… É todo um outro mundo de cores e de cheiros [risos]… No fim, é um pouco como a pintura holandesa do século XVI, que transformava imagens prosaicas, como um simples copo meio de água ou uma lagosta, em obras de arte. A arte e a memória são uma porta para outras perspectivas, outras maneiras de olhar.

Usou muitos apontamentos ou diários para escrever este romance? Ou bastou-lhe a memória?
Mantive diários durante algum tempo, mas um dia, há muitos anos, queimei-os todos numa lareira, folha por folha. Agora nunca tomo notas de nada, tenho boa memória. Lembro-me de todos os lugares onde estive, de pormenores desses lugares, mas não me lembro das pessoas. A minha memória é sobretudo visual, lembro-me de casas e de paisagens. Quando escrevo vejo imagens, não vejo palavras nem frases, mas as paisagens que elas produzem.

A escrita como recuperação de um tempo perdido?
Acho que temos todas as idades dentro de nós. Mas não temos acesso. Se as quisermos de volta temos de escrever sobre elas. Ao longo de todo o processo de escrita, senti-me muitas vezes com dezasseis anos, e com vinte e com trinta. Escrever é lembrar, nesse sentido sou um proustiano.

Houve quem comparasse A Minha Luta ao Em Busca do Tempo Perdido. A obra de Proust influenciou-o?
O meu primeiro romance [Fora Deste Mundo, 1998 (inédito em português)] foi, de facto, influenciado por Proust. Talvez venha daí essa tentação de comparar também este. A tradução para norueguês do Em Busca do Tempo Perdido aconteceu apenas nos finais dos anos 1980. E a tradução era tão boa que acabou por influenciar vários autores. Antes escrevia-se com frases curtas, mas depois foi como se os escritores tivessem descoberto a possibilidade de frases mais longas e um pouco ornamentadas. A única semelhança que o A Minha Luta tem com a obra de Proust, é que eu também quis pôr a minha vida toda em 3500 páginas.

Quem foram os outros autores que o influenciaram?
Aos 14 ou 15 anos li muitos thrillers. Foram importantes para me ensinarem a criar uma tensão narrativa. Quando comecei a escrever, para além do Proust, talvez a maior influência tenha sido Gombrowitz. Depois há o Livro do Desassossego, do Pessoa. E o Céline.

Aquando da publicação do primeiro livro, na Noruega, em 2009, foi de imediato anunciado o programa de edição dos restantes cinco volumes, que terminaria em 2011. Um volume a cada seis meses. Já estavam todos escritos quando a publicação se iniciou?
Não, tinha apenas os dois primeiros.

Como é que estruturou a obra para seis volumes?
Foi por acaso. A primeira vez que falei com a editora, o manuscrito tinha 1200 páginas. Como é que se vai publicar isto?, pensaram. E puseram a hipótese de dividir aquilo em doze partes e publicar uma por mês. Mas era um risco grande para a editora, doze livros, eles perceberam isso. Era muito dinheiro. Aventou-se então a hipótese de se publicarem seis num ano. Mas a ideia de dividir o que escrevera em seis volumes não me agradou. Dividi então em dois e disse-lhes que escreveria mais quatro. Gostei do desafio de sentir que tinha mesmo que escrever aquilo.

Não deve ter sido fácil escrevê-los depois de o primeiro volume ter sido publicado e de ter tido toda a atenção do público, da crítica e dos media.
Foi muito duro. Tudo publicado em três anos. E tive um percalço com o sexto volume, que tive de abandonar quando já ia a meio, e recomeçar. Todos os dias achava que ia falhar, que não ia ser capaz de chegar ao fim. Precisava que todos os dias um amigo, a quem eu lia as vinte páginas diárias que escrevia, e depois também o meu editor, me dissessem, ‘está bom, continua’. Eu continuava.

Como é que lidou com o sucesso? Porque na Noruega houve uma verdadeira ‘Knausgårdmania’…
Tive de aprender a viver com isso. Distanciar-me de tudo aquilo, que foi para mim inesperado. Já o tinha feito com o meu primeiro romance, que não foi um sucesso tão grande como este, mas teve algum. Senti esse medo antes de publicar o segundo romance. Nunca me vi como um autor de ‘best-sellers’. De que maneira é que as coisas aconteceram assim? Perguntei-me muitas vezes. O que é que eu fizera? O êxito provocou-me, durante algum tempo, um problema de identidade, pois afectou a imagem que eu tinha de mim como autor.

Como justifica o sucesso deste romance?
A única coisa que me ocorre é que talvez eu tenha dado às pessoas a ilusão de terem vivido a minha vida, mas sem terem realmente sentido as minhas dores. Tive uma vida comum. Mesmo o facto de os problemas do meu pai se deverem em parte ao álcool, não me parece nada de singular. Todas as famílias têm o seu alcoólatra. Eu sentia uma grande frustração com a minha vida familiar. Não lhe achava sentido algum. Via os membros da minha família como inimigos. Este romance ajudou-me a resolver algo em mim, salvou-me.

A escrita trouxe-lhe o sentido da vida?
Quando o meu pai morreu foi como se o mundo tivesse parado. Só deixei de chorar quando ele foi enterrado. A vida passou a ser algo importante. É o que acontece sempre com a morte e com o amor. Damos valor à vida quando nos apaixonamos ou quando alguém morre, tudo passa a ter outra intensidade. Mas apesar de lhe darmos uma nova importância, podemos continuar sem lhe encontrar um sentido. A leitura, a escrita e a arte, acabaram por dar sentido à minha vida. Não sou religioso. Mas acho que este sentimento trazido por estas coisas se deve assemelhar de alguma maneira ao sentir religioso: como uma espécie de esplendor da existência que nos põe em conexão com os outros, com o mistério que eles são.

Somos um espelho mais ou menos deformado das nossas famílias?
Sem dúvida. Foi o que eu procurei encontrar, a minha identidade, e como é que a formei. O livro é 90% a minha família e 10% eu. Os pensamentos que escrevi, as coisas que disse, na sua grande parte não são minhas, foram-me passados por eles, de uma maneira ou de outra. Eu deformei-os e adaptei-os.

Quantas horas escrevia por dia?
De dez a doze horas, era o meu trabalho. Não era uma questão de auto-disciplina. Era outra coisa: fazer só aquilo porque era só aquilo que eu queria fazer. Uma coisa importante era o ritmo.

O ritmo da escrita?
O ritmo do texto não me interessa tanto, porque esse varia. Interessa-me o ritmo com que escrevo.

Ao mesmo tempo teve que lidar com as reacções dos seus familiares, que ao verem-se expostos no romance não reagiram bem…
O livro era sobre a minha vida. E quando terminei os dois primeiros volumes, dei-o a ler às pessoas da minha família que lá apareciam, e à minha ex-mulher. Fiquei chocado com as reacções delas. Disseram-me que eu não poderia publicar o livro e que se o fizesse iriam para tribunal para o impedirem de ser vendido. Eu tive de tomar uma decisão, se o publicaria ou não, pois estava a magoar aquelas pessoas. Sempre olhei para mim como um bom homem. Mas publicar estes livros, com todos os problemas que eu sabia que iria provocar na família, não era talvez um acto para uma boa pessoa. Mas pensei que, pelo menos uma vez na vida, teria de ser honesto para comigo. Achei que eles não tinham o direito de me impedir de falar do meu pai, de escrever a história dele. Nem a minha. E a família fez também parte dessa história. Foi tudo muito complicado, e continua. Deixaram de falar comigo, e eu com eles.

Se fosse hoje tornaria a fazê-lo?
Sim, sem dúvida. Quando se escreve temos de nos isolar dos outros, não podemos lembrar-nos de que eles existem, o que vão pensar do nosso trabalho, o que poderão dizer. Temos de ser completamente livres. Escrever tem de ser muitas vezes um acto imoral. Para o fazer é preciso ser independente e livre, e isso obriga a que de vez em quando se tenha de ir contra o social, que é o lugar da moral.

O romance foi objecto de várias discussões públicas sobre o assunto…
Sim, provocou várias debates sobre a ética na literatura. O que é que a literatura pode dizer, quais são as fronteiras. Não participei nessas discussões.

O título [A Minha Luta remete para o livro homónimo de Hitler, publicado em 1925] foi também uma provocação?
O título é uma quantidade de coisas e também uma provocação mas sem qualquer intenção ideológica. Só queria dizer aos leitores, peguem neste livro ou deixem-no. Gosto do título desde que me foi sugerido numa conversa com um amigo. No romance eu também quis voltar ao meu passado para compreender o presente, como Hitler fez em Mein Kampf. Isso é importante porque é o final da Segunda Guerra Mundial que hoje nos define. Somos hoje na Europa um reflexo invertido do sonho de Hitler, com o seu regime totalitário e os seus campos de concentração. No último volume analiso o caso de Hitler antes do nazismo, a sua vida e o seu tempo, quando ele tinha 16 anos, a sua relação com o pai, a sua luta. Mas não foi uma coisa premeditada. Interessa-me a diferença entre o individuo e as massas.

O que significa para si o título A Minha Luta? Que luta foi essa?
Tem três significados pessoais: a luta pela sobrevivência, a luta para ser ao mesmo tempo escritor e bom pai, e a luta para perceber qual é o meu lugar no mundo.

Foi a figura paterna, o facto de se ter tornado pai e de não se sentir confortável com a nova função, que espoletou todo o romance?
Talvez … (longo silêncio). Durante vários anos tentei escrever sobre o meu pai mas não chegava a lado algum. Talvez tudo estivesse ainda muito próximo de mim, e por isso não conseguia transpor aquilo para uma outra forma. A literatura exige isso.

A forma é o mais importante em literatura?
Se o estilo, o tema, o enredo, forem superiores à forma, o resultado não é grande coisa, é pobre.

Escreveu isso no romance…
Sim. É por isso que acho que bons escritores com um estilo muito marcado escrevem por vezes livros fracos, porque não encontram a forma exacta. A força do tema tem de ser ultrapassada pela forma para que a literatura possa acontecer. É a essa destruição que se chama ‘escrever’. Mais do que criar, escrever é destruir. Rimbaud, por exemplo, sabia disso muito bem. Para ele tudo tinha a ver com liberdade, a escrita e a vida. Foi por causa dessa fé na liberdade que ele deixou a escrita para trás. Penso que a partir de determinada altura deve ter sentido que a escrita se tornou para ele num limite que tinha de ser também destruído.

Voltou a escrever depois de A Minha Luta?
Tenho saudades da escrita, não tanto pelas horas passadas a escrever mas pelo processo criativo, que no meu caso é ao mesmo tempo um processo destrutivo. Como um suicídio que tem como arma a literatura. Para depois se renascer. Desmoronar para reconstruir. Não sei se voltarei a escrever. As coisas são hoje para mim bastante diferentes do que eram quando comecei este romance. Não odeio a minha vida, já não tenho razões para escrever.
 

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