Na intimidade de Tordre o pessoal é político

O espectáculo do coreógrafo francês Rachid Ouramdane apresentado este sábado no Teatro Constantino Nery, Matosinhos, em mais um capítulo do Festival DDD – Dias da Dança, é uma dança de partilha centrada nas particularidades de duas mulheres.

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Annie Hanauer , uma das bailarinas de Tordre, tem um braço protético e isso molda a sua lógica interna de dança PATRICK IMBERT
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Rachid Ouramdane, coreógrafo francês que criou Tordre em 2014

Tordre arranca com uma espécie de desfile de duas bailarinas ao som de Funny Girl, o musical de William Wyler. Uma rasteira irónica, já que o que se segue pouco tem que ver com as fantasias e os arquétipos da Broadway, apesar da pele clara e dos olhos azuis das intérpretes. Annie Hanauer é uma bailarina com um braço protético, particularidade que molda a relação com o seu próprio corpo e a sua lógica interna de dança. Lora Juodkaite gira à volta dela própria sem parar, um estranho vocabulário de movimento que começou a desenvolver em criança como forma de se acalmar e procurar segurança.

“O início da peça com o Funny Girl, também utilizado no final, é uma referência aos padrões de beleza dominantes e aos modelos com que estamos habituados a representar mulheres num palco”, diz ao PÚBLICO Rachid Ouramdane, coreógrafo francês que criou Tordre em 2014, espectáculo agora apresentado em estreia nacional no Festival DDD – Dias da Dança, este sábado no Teatro Constantino Nery, em Matosinhos. Não é uma “simples crítica ao cânone”, assinala, mas uma tentativa de propor outro ponto de vista. “Mentalmente, fisicamente, esse cânone e essa gramática não combinam com estas mulheres. Este espectáculo lida com preconceitos que temos em relação a pessoas mas também em relação à arte, ou seja, em que medida é que nos permitimos a ver de modo diferente.”

Em Tordre, Rachid Ouramdane também se permitiu criar de forma diferente. Deixa de lado a abordagem documental que tem vindo a edificar boa parte do seu reportório – uma mudança de direcção de certa forma iniciada em Tenir les Temps, que trouxe ao Centro Cultural de Belém em 2015 – para se centrar no corpo, no movimento. Tordre não é sobre os refugiados climáticos e o abismo ecológico retratados em Sfumato, nem sobre a tortura falada na primeira pessoa em Des Témoins Ordinaires, nem sobre a Justiça e os métodos de repressão abordados em Polices!. Mas não deixa de ser político, considera o autor.

“O meu interesse principal é como lidamos com pessoas que são diferentes da maioria. E tanto a Lora como a Annie têm algo nelas que foge à norma”, observa. Depois de vários anos a trabalhar com as duas bailarinas, que o foram acompanhando nas suas investigações, Rachid Ouramdane percebeu que “elas próprias podiam ser o assunto”. Para isso foi preciso esperar até conseguir “um certo grau de cumplicidade” – afinal, Tordre é um espectáculo profundamente íntimo, sem ser invasivo e sem encarar as particularidades de cada mulher de um modo patológico ou voyeurista. É uma dança de partilha, compreensão e superação entre a tensão, a obsessão e uma beleza apaziguadora, em que se drena impurezas e a fragilidade é usada como instrumento de empoderamento.

O lado pessoal é político e um veículo para “tocar em algo que possa dizer respeito a uma comunidade”. “Acho que é isso que eu tento sempre fazer no meu trabalho: tocar em assuntos maiores a partir de casos particulares”, explica o coreógrafo, que assume a direcção do CCN2 – Centro Coréographique National de Grenoble juntamente com Yoann Bourgeois, também ele presente no DDD com Celui Qui Tombe, espectáculo de encerramento do festival.

Tordre funciona como um ponto de encontro entre Lora e Annie, que vão ocupando o palco à vez, com solos. A ligação (e a confiança) entre elas vai crescendo, e a peça acaba por se transformar progressivamente num dueto pouco convencional. A coreografia, marcada por música trepidante e quase hipnótica, semeia um tempo só dela. Ou, melhor dizendo, só delas. “A Lora e a Annie são mais do que intérpretes, são co-autoras. Elas trazem uma força transformativa ao espectáculo”, assinala Ouramdane.

Há ainda uma terceira mulher, Nina Simone, que ouvimos a meio de Tordre, num solo desarmante de Annie Hanauer, com a canção Feelings, mais exactamente a interpretação ao vivo no Montreux Jazz Festival de 1976. “A Nina Simone canta de forma brilhante, como sempre, mas ao mesmo tempo expressa como já não concorda com a letra da música. Ela mostra uma certa complexidade da vida e acho que é isso que a Annie também faz.”

 

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