Viagem pela América e os seus livros, com Trump em pano de fundo

Durante um ano, Isabel Lucas, jornalista e crítica literária, foi publicando neste jornal o produto das suas reportagens, que agora vêem a luz sob a forma de livro: Viagem ao Sonho Americano.

Foto
As reportagens de Isabel Lucas para este jornal agora em livro Paulo Alexandrino

O fascínio que a América de há muito desperta entre os nossos escritores, jornalistas e intelectuais em geral fica patente no sem-número de livros ou textos dedicados a relatar périplos e viagens pelos Estados Unidos. Recentemente, com o título América, The Beautiful foi publicada uma excelente colectânea que, sob organização de Carla Baptista, reúne escritos de Eça de Queirós, Jorge de Sena, Natália Correia, Joaquim Paço d’Arcos e outros (Tinta-da-china, 2016). A essa resenha poderíamos juntar livros tão diversos como Novo Mundo, Mundo Novo, de 1930, contendo as reportagens efectuadas por António Ferro ao serviço do Diário de Notícias, o interessantíssimo Sinfonia do Degrau, livro de 1940 da autoria do arquitecto Jorge Segurado, ou, num registo psicadélico típico dos anos 60, América em Carne Viva, saído em 1974 da desconcertante pena do jornalista João Alves da Costa.

Perante tão vasta bibliografia, de que aqui se deu apenas uma breve nota, será difícil inovar na abordagem do Novo Mundo. Tomando os livros — ou, se quisermos, a literatura — como pretexto e guia de orientação, este livro vence plenamente aquela dificuldade, apresentado a América sob uma perspectiva muitíssimo original. Durante um ano, a autora, Isabel Lucas, jornalista e crítica literária, foi publicando neste jornal o produto das suas extensas reportagens, que agora vêem a luz sob a forma de livro. Viagem ao Sonho Americano (título não especialmente original, diga-se) apresenta doze reportagens que têm por mote outros tantos livros, entre clássicos da literatura, como Moby Dick, a autores contemporâneos já com estatuto consagrado, como David Vann e A Ilha de Sukkwan.

Além do conhecimento profundo das obras de que fala, aliada ao domínio da literatura secundária em seu torno produzida, Isabel Lucas reúne dotes raros de repórter, cruzando, numa narrativa de apurada qualidade estilística, elementos e informações sobre as terras que visita, conversas com escritores e pessoas que se atravessam no seu percurso. Há, naturalmente, textos de nível desigual nesta selecção de doze destinos, o que ocorre não tanto por ausência de empenho da autora mas devido à própria natureza dos locais, das obras literárias ou das pessoas com quem falou. Pela positiva, destaca-se o que nos diz sobre o livro de David Vann e sobre o Alasca, um território com uma taxa de suicídio que é quase o dobro da média nacional americana, com 9,5 por cento da população com mais de 12 anos dependente do álcool ou com a maior taxa de violações dos Estados Unidos. Numa apreciação crítica, será menos conseguida, por exemplo, a reportagem sobre Nova Iorque, seja pela dificuldade intrínseca de discorrer sobre uma cidade em relação à qual já tudo foi dito, seja pelo apoio em excesso no imenso caudal de literatura gerada pela Grande Maçã, com destaque, neste caso, para os livros de Enric González (Histórias de Nova Iorque, 2015) e de Corrado Augias (Segredos de Nova Iorque, 2008).

No final, o retrato a sépia de um país com entre 2 a 3 milhões de sem-abrigo, onde 8% dos estudantes universitários tentam o suicídio e em que a pena de morte é aplicável em 36 dos Estados da União. Em todo o caso — e este é, entre tantos outros, um dos grandes méritos do presente livro —, Isabel Lucas observa a realidade, descreve admiravelmente ambientes e paisagens, mas não profere juízos de valor nem cede quer a um louvor acrítico à América nem a uma retórica anti-americana vulgar. Donald Trump, é certo, acompanha de fio a pavio este conjunto de reportagens, que para mais podem ser lidas sequencial ou aleatoriamente, sem perda de interesse. Ora próxima, ora longínqua, a presença das eleições presidenciais e algumas revelações inesperadas (como a de que uma percentagem significativa de índios vota no Partido Republicano) constituem, digamos assim, o ponto de conexão destas reportagens com a realidade concreta de um tempo vivido. Porventura, o modo excessivo como isso ocorre, não existindo praticamente nenhuma das reportagens em que a questão das eleições, de Hillary ou de Trump não seja convocada, acaba por aprisionar este livro, de certa forma, a uma dada conjuntura histórica, quando o esforço e o talento de Isabel Lucas mereceriam que esta digressão por milhares de quilómetros tivesse maior perenidade, como esperemos que aconteça — pois o livro merece, a todos os títulos, figurar como um das melhores e mais originais obras produzidas nos últimos anos em matéria de literatura de viagens.    

Sugerir correcção
Comentar