Músicas do mundo ou músicas de fora da Europa?

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O músico David Byrne que cedo acabaria por ser um crítico impiedoso da expressão Músicas do Mundo – “ I hate world music”. João Henriques
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Festival Músicas do Mundo em Sines Miguel Madeira

Façamos o seguinte exercício. Imaginemos que na década de 70 do século passado um artista e produtor musical indiano, motivado por uma enorme curiosidade, viaja para a Europa em busca de músicas e de compositores desconhecidos na Índia.

Numa das belas festas da Primavera em Viena de Áustria ouvirá um concerto que gravará num Nagra e numa cidade italiana, num casamento em Nápoles, gravará por sua vez canções que, suspeita, fariam parte de uma ópera. Satisfeito, regressará à Índia e aí fará ouvir estas e outras gravações a que chamaria músicas do mundo. É um exercício fantasioso por diversas razões, uma das quais decorre do facto da música consagrada ocidental se ter imposto em muitas regiões do globo, dentro de uma lógica de cânone universal.

Mas na verdade foi precisamente este o exercício que fizeram artistas ocidentais particularmente interessados em formas musicais originárias de outras regiões, sustentadas em instrumentos desconhecidos com sonoridades inusitadas. Viajaram pela Índia, África, Médio Oriente, Austrália e gravaram essas músicas, não tendo tido particular cuidado nos contornos etnomusicais a que tal fixação obrigava, nem tendo feito a investigação necessária que determinasse o nome dos compositores, letristas ou grupos e, no caso das músicas tidas como tradicionais, sem especificar a sua origem concreta. Por isso, num gesto de alguma simplicidade, designaram esse arquivo, que transportaram para a Europa e para os EUA, como Músicas do Mundo.

Entre os vários colectores destaque-se Robert E. Brown e David Byrne, em particular este último que cedo acabaria por ser um crítico impiedoso da expressão Músicas do Mundo – “I hate world music”. Uma das razões para esta posição de Byrne tinha a ver com o facto de que a expressão mais não era  do que uma fórmula de marketing comercial assente na ideia de que as gravações ou concertos com esta marca se reivindicavam como alternativos e autênticos.

Por sua vez esta autenticidade e esta alternativa decorriam de serem originários do mundo, o que, nesta linguagem, quereria com certeza dizer, originários de um mundo selvagem, puro, tradicional, sem estarem maculados pela distribuição capitalista, em suma, de um mundo perfeito do qual se teria de subtrair a Europa e os EUA.

Quando apresentados neste mundo ocidental, estes concertos criavam uma réplica de espaço festivo original e que acontecia de preferência em locais naturais, até, pouco tempo depois, terem sido integrados também em salas de espectáculos urbanas e até de reportórios eruditos ocidentais.

Ora o que está em causa nesta reflexão não é a presença de concertos de bandas, músicos, orquestras, cuja origem é não europeia. Bem pelo contrário, tal presença é um sinal de cosmopolitismo e é desejável que muitas mais obras e mais diversas ainda possam ser apresentadas nas programações musicais entre nós.

O que está em causa é o modo de olhar e de promover estes concertos ou as gravações de origem não ocidental, tomando-os como subalternos em relação às de origem erudita ou pop europeias; tomando-as como se todas fizessem parte de uma mesma música global e uniformizada de que, talvez, apenas se diferenciem o ritmo e alguns instrumentos.

Pensar as Músicas do Mundo quer dizer pensar o mundo como um depositário de factos e de acontecimentos – neste caso musicais – a partir do qual se pode coligir, conforme uma agenda ou uma vontade de um protagonista. Ora com a necessária precisão de linguagem, diz-nos Nelson Goodman que “não encontramos no mundo senão o que lá tivermos posto” e o que a expressão Músicas do Mundo impõe é uma subalternidade destas músicas, acrescida muitas vezes do anonimato do autor e do compositor e da negação da relação de muitos compositores não ocidentais com a sua contemporaneidade, uma vez que são remetidos para um género musical ao qual se retirou a história. E atente-se ainda como além de se retirar a história dessas músicas, retira-se também o contexto de onde as mesmas surgem e uma parte substantiva da sua comunicabilidade quando são cantadas.

Tantas são as vezes que as mesmas instituições que tanto investem em programas de sala - com traduções integrais de libretos, notas bibliográficas sobre os compositores e intérpretes, tradução de árias – mais não fazem que distribuir, nos concertos das músicas do mundo, uns folhetos com o nome da banda e por vezes a citação de um crítico sobre um concerto dado como publicidade.

É assim que belos poemas iranianos, canções árabes ou versos em língua Xhosa nunca são apreciados pela maioria dos públicos ocidentais, porque nenhuma forma de tradução dos mesmos aparece impressa. Como reagiria uma audiência se na projecção de um filme russo não aparecesse a legenda com a tradução dos diálogos ou das leituras, limitada à audição do ritmo musical das palavras? É que há uma dimensão local que as obras transportam consigo e que lhes é retirada, quando são mescladas num universo sem quaisquer referências como é o das músicas do mundo.

Nesta forma de tratar com igual valor todas as músicas do mundo, fica-se também privado da dimensão política das canções, do simbolismo de muitas dessas composições e também da relação de entendimento de classes, conforme as origens regionais destas músicas.

Enquanto as músicas africanistas e latinas são tidas como géneros populares, promovidos e recepcionados como tal, as de origem indiana ou japonesa são apresentadas com protocolos mais sofisticados. Isto porque o orientalismo foi sempre considerado na Europa como um género literário e artístico erudito, a exigir salas e públicos da música erudita. É pois necessário dar visibilidade ao local de origem destas músicas e começar por retirá-las desta designação informe e tão ahistórica que é Músicas do Mundo.

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