Música sombria

A poesia de Inês Dias, como se confirma neste seu terceiro livro, tem a qualidade da subtileza e nasce da faculdade da atenção

Ao seu terceiro livro, é possível — e obrigatório — perceber que a poesia de Inês Dias evoluiu no melhor sentido e cumpre com uma elevação sempre maior o que nela se anunciava desde a estreia. Tornou-se mais densa, mais idiomática, libertou-se de inflexões que, embora ligeiras, às vezes a perturbavam — a queda numa certa afectação a que poderíamos chamar “poetismo”. Neste último livro, Um Raio Ardente e Paredes Frias, a disposição que tende para a elevação e para a alteridade — e que faz da idealização imagética o seu dispositivo fundamental — é bem acentuada. Mas ganha carácter de necessidade, não sucumbe ao artificialismo e instala com força a “música” própria deste livro: uma música de Outono, poderíamos dizer, com uma tonalidade simbolista.

O livro termina com um poema intitulado Matéria da Bretanha. A “matéria da Bretanha” de Inês Dias, aquilo que a sua linguagem toca, ou atinge, é o mundo das pequenas coisas e dos lugares, o mundo da experiência vivida (transitório, fugaz) filtrado pela intimidade, isto é, interiorizado de acordo — e a dimensão musical desta palavra adequa-se plenamente — com uma disposição afectiva: “[...] Na Nazaré, cujas ruas são longos/ dedos de vento substituindo os vermes/ no seu trabalho de nos descarnar,/ ainda repetimos histórias e gestos/ como quem acende fósforos,/ convencidos de que assim/ veremos os degraus em falta/ e afastaremos, por enquanto, o frio” (p. 31).

A Nazaré é apenas um dos lugares que surgem ao longo deste livro, e que são o “lá fora” de que se fala na primeira estrofe de um poema que se chama Gaiola: “Agora que regressei/ a este quarto para ficar,/ Não me contes que a vida/ continua lá fora,/ não me tragas/ a luz de outros voos”. A referência a lugares não desvia esta poesia do seu fim, formulável nestes termos: o acto poético consiste em perceber e não em representar. Mas falávamos da intimidade, desse núcleo que tudo absorve segundo as leis de um irredutível idiomatismo, como o lugar originário desta poesia e, em última instância, a sua “matéria da Bretanha”. Ora, a intimidade encontra aqui a sua música mais própria num estado de espírito que é a tristeza. Uma tristeza de certo modo objectivada: não é o sujeito que é triste, mas o mundo, as coisas, as experiências. Tudo isso se oferece na sua mudez, e é por isso que é triste. É do confronto com esta mudez que fala a poesia de Inês Dias. Por isso é que toda a fala — o poema — é, em certa medida, sussurrada, segredada, codificada pela intimidade. E é aí que adquire uma enorme importância a faculdade da atenção que estes poemas manifestam: a atenção micrológica, ao detalhe, às pequenas coisas, aos vestígios. Todo o movimento nesta poesia vai do detalhe e do vestígio para a totalidade, do material para o abstracto. Há um poema que começa com uma citação: “O passado é um país estrangeiro”. De certo modo, este devir estrangeiro que afecta o passado — e acrescentemos que há nesta poesia a tendência para a espacialização do tempo — ganha a dimensão de uma lei geral: tudo é simultaneamente íntimo e estrangeiro. Esta polarização está presente em todos os momentos e perturba e complica qualquer leitura que pretenda resolver esta duplicidade num só sentido. É por isso que mesmo o espaço doméstico e familiar para que alguns poemas remetem é igualmente um território estrangeiro, tocado pelo inquietante. E é aqui, nesta inclinação que vem perturbar todos os dados, que a poesia de Inês Dias ganha uma densa subtileza e se afasta de uma luminosidade que parece estar no seu princípio.

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