Música para curar picadas de tarântula e honrar as mulheres guerreiras

O Festival Med, em Loulé, foi agitado pelas belíssimas actuações de Canzoniere Grecanico Salentino, Lura e Throes + the Shine. E lembrou-nos que a música nasce sempre num lugar e num tempo específicos.

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Os Throes + the Shine dr
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Canzoniere Grecanico Salentino dr
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Canzoniere Grecanico Salentino dr
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O concerto de Lura dr
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O concerto de Rodrigo Leão dr

Nunca é só a música. E é bom que assim se mantenha. Não é que as canções não se bastem a si mesmas e não galguem fronteiras sem a ajuda de um empurrão suplementar, mas num festival ou num concerto dedicado às chamadas músicas do mundo calha bem quando o embrulho musical ou festivo desvenda histórias e tradições que enquadram a música no espaço e no tempo. Quando Mauro Durante, aos comandos do maravilhoso Canzoniere Grecanico Salentino, conta em palco que aquela música é filha da receita salentina para curar as picadas das tarântulas da região e sobretudo o comportamento desvairado das “vítimas”, torna-se muito mais claro o tom hipnótico e delirante, como se aqueles sons percutidos e alucinados fossem uma viagem permanente entre a consciência e um estado de alteridade. Assim como quando Lura fala da força das mulheres guerreiras africanas e de Gorée como um entreposto da escravatura ao largo do Senegal, é a História de Cabo Verde que se explica e é implicada. Mesmo que, logo a seguir, o embrulho seja de celebração, a verdade é que as canções não nascem solitárias nem desligadas do seu lugar de origem.

São dois exemplos extraídos da noite de sexta-feira no Festival Med, em Loulé, dois dos concertos mais marcantes na segunda data desta 14.ª edição de um dos acontecimentos capitais para a descoberta de outras latitudes musicais em território português. (Da noite anterior, lamenta-se por aqui o cancelamento do instável renovador do raï Rachid Taha, assim como se gaba com generosidade a fogosa passagem pela cidade algarvia do soul/funk inflamado Marta Ren os seus Groovelvets). Aquilo que Canzoniere Grecanico Salentino e Lura nos dizem e fazem com as suas actuações é partilhar e falar das suas culturas, permitindo entrever um pouco mais do que uma articulação de sons singular e sedutora.

Lura homenageia Cesária Évora com Moda bô, tema que cantou em dueto com a diva maior da música cabo-verdiana e que desfia, a cada verso, a sua admiração pela voz de Sôdade, terminando com um curto solo de assobio. Uma pequena liberdade que Lura se permite, contando em seguida que a mãe a admoestava, em criança, alegando que assobiar não era coisa bonita porque em Santo Antão se diz que “as meninas que assobiam andam à procura de namorado”. E é sintomático que Lura recupere este episódio: porque aquilo que a vemos e ouvimos fazer é tornar-se uma extraordinária contadora de histórias, ao mesmo tempo que, de forma respeitosa e conhecedora, prefere saltar por cima das proibições e dos interditos culturais, aliviando a tradição dos costumes que a tornam pesada até a transformar em canções leves e desempoeiradas, graças a uma banda mestiça dirigida por Toy Vieira que lhe confere um travo único. Depois da esperada passagem por Na ri na, havia de terminar com o irresistível funaná M’bem di fora.

No caso do Canzoniere Grecanico Salentino, possivelmente o grande concerto de sexta-feira, tudo concorre para um crescendo de êxtase: a repetição imparável do ritmo impelido pelos tamburellos (pandeiretas), pelo jogo de vozes em alternâncias ou sobrepondo-se em polifonias propositadamente rudes, por uma bailarina que rodopia como única dança possível para espantar demónios e pelo bouzouki que coloca a música num permanente espaço mediterrânico indeciso entre rumar a Itália, Grécia ou ao Magrebe. Não é por acaso, aliás, que Mauro Durante assume um discurso sobre “o mar não como barreira, mas como meio de comunicação”, como rota para trocas culturais, numa alusão clara aos fenómenos migratórios e às condições precárias em que continuam a dar-se hoje em dia. De resto, é disso que o Canzoniere hoje nos fala – agora que as mordidas das tarântulas já não motivam rituais deste género, servem a música (pizzica) e a dança para espantar males contemporâneos, através de canções tão embriagantes quanto Nu te fermare.

Haja rock, haja kuduro

Sem surpresa, nem tudo foi tão entusiasmante assim na noite de sexta-feira. Sobretudo no que toca à representação do hip-hop de matriz sul-americana. Depois de, em 2016, termos assistido em Loulé à extraordinária Ana Tijoux, rapper com tudo no sítio – um flow tão incisivo quanto as suas letras de alvos claros (a igualdade de género, a política chilena, as tácticas capitalistas, a demasiado pronunciada diferença de classes…) –, até o rap musculado num ginásio hardcore do brasileiro BNegão parece coisa mole e flácida. Tal como acontecera já com o mexicano Boogát no Palco Matriz, tanto um como outro, adoptando um hip-hop mesclado com referências locais, parecem não conseguir casar os dois mundos com o equilíbrio justo. BNegão acerta na mouche com a excelente Essa é pra tocar no baile, mas de resto o ex-Planet Hemp parece seguir sempre uma música desenhada a traço grosso, redundando num reportório esborratado. Boogát, por seu lado, parece ter misturado a música urbana com as sonoridades campesinas sem se ter lembrado de comprar a cola para as juntar adequadamente. Tendo deixado recentemente o Canadá, onde nasceu, para se aproximar das suas raízes mexicanas, talvez seja isso que esteja ainda a faltar à música de Boogát: deixar de responder a uma ideia longínqua de como se ligar à sua herança musical e passar a assumi-la de forma mais orgânica e menos estereotipada.

Pelo contrário, se há coisa em que a parceria luso-angolana Throes + the Shine é mestre é a mais escorreita e conseguida união entre o desembestado kuduro que lhes dá voz e a energia rockeira que lhes anima os instrumentos. Enquanto os Buraka Som Sistema deram ao kuduro uma demão planetária, tornando uma sonoridade periférica de Luanda tão digna e influente quanto qualquer outra música provinda das margens das grandes metrópoles do mundo – em mais um capítulo da ascensão da contra-cultura a espelho real das linguagens emergidas fora do bem-comportado penteadinho mainstream –, os Throes + the Shine prosseguem numa senda de marginalidade, em que ao rock é dada a oportunidade de voltar a experimentar o nervo de ser uma música proscrita, em desalinho e, no máximo, destinada a numerosas minorias. No palco desta gente, as vozes de Diron e Mob a cuspirem rimas num frenesim incandescente – tanto assim que haviam de agradecer, no final, confessando que “valeu a pena queimar os lábios” – partilham as atenções com teclados, guitarra e bateria em permanente desassossego. Chegados ao álbum Wanga, há agora menos guitarras e mais electrónica, mas nem por isso diminui esta agitação que resulta em canções à beira da explosão.

Também mais expansivo do que o habitual, Rodrigo Leão apresentou no Med um concerto em que a sua vertente mais etérea teve direito a descanso e aquilo a que se assistiu foi um assomo das suas abordagens a uma canção de câmara que tanto traz à baila o tango mais lascivo quanto as canções elegantes e cinemáticas de Edith Piaf ou Ornella Vanoni. Uma lição de como adaptar o reportório às condições especiais de um festival que, na sexta-feira, começou por fazer o silêncio possível para escutar o fado sem tempo de Helder Moutinho, patrocinado pelas impagáveis criações de Linhares Barbosa, Fontes Rocha ou Alfredo Marceneiro. De Alfredo Duarte, marceneiro de profissão e habilíssimo a mexer nas palavras, havia Helder de cantar fados de muitas Marias e um Fado bailado em que se diz que “há quem leve a vida inteira a bailar com a própria vida”. Por aqui, em Loulé, continuar-se-á a bailar no sábado, madrugada fora.

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