Música de perdição e música de salvação

Uma suíte de contos sobre “a mais romântica de todas as artes”.

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enric vives-rubio

A música (e não me refiro, obviamente, aos espúrios simulacros da moderna indústria de “conteúdos” produzidos e consumidos massiva, voluntariosa e nesciamente) é emblemática do Romantismo alemão, no âmbito do qual emergiu da condição de mero ofício à de manifestação estética (e não só) suprema e sublime. Hoffmann sacramentou-a (numa célebre recensão da “Quinta” de Beethoven) como “a mais romântica de todas as artes”, se não mesmo como “a única ‘puramente’ romântica”.

O presente volume coliga cinco narrativas ficcionais breves que testemunham essa preeminência da arte musical na estética romântica alemã, escritas por três dos seus autores canónicos: Wilhelm Heinrich Wackenroder (1773-1798), Heinrich von Kleist (1777-1811) e o já citado E. T. A. Hoffmann (1776-1822). E até poderíamos entrever no seu alinhamento — que vai do texto mais antigo, datado de 1796, para o mais recente, que é de 1819 — algo do processo histórico da sua autonomização estética. Assim, os exemplos musicais aduzidos nos primeiros textos são retirados de missas, oratórios ou cantatas que podem até ser veículos de conversão religiosa, como acontece no conto de Kleist, intitulado A Santa Cecília ou a força da música (uma lenda); no primeiro dos dois textos de Hoffmann, trata-se de óperas de Gluck; no último, já só se fala de música “puramente” instrumental. Parece espelhar-se aqui a progressiva “libertação” da música de servidões religiosas, de entretenimento ou outras, e do subsídio de outras artes (a poesia ou a escrita dramática, por exemplo), em favor daquela essencialidade instrumental que, segundo Hoffmann, caracterizaria a música “absoluta” e não programática.

Curiosamente, os dois contos de Hoffmann são, nesta antologia, os menos possuídos pelo abismo do inefável e do indizível. Cavaleiro Gluck. Uma recordação do ano de 1809 é um típico e amável espécime do género fantástico que tão justificada glória trouxe ao autor, em Portugal inclusive. É também uma revisão mediúnica das grandes óperas francesas e italianas de Christoph Gluck (1714-1787), temperada por subtis alusões irónicas ao meio musical berlinense do início do século XIX: “Tagarelam tanto acerca da arte, do sentido da arte e sei lá do que mais, que não conseguem criar”. A mordacidade acentua-se no conto final, O Barão de B., recapitulação satírica da história da ideia de virtuosismo associável à execução do “instrumento mais difícil e misterioso de todos”. Um sério divertimento: “Divinal, este Haydn sabe arrebatar a alma, mas para o violino não sabe ele escrever. Talvez nem sequer o deseje, pois, se o fizesse e escrevesse da única maneira verdadeira, como o fez Tartini, vocês não conseguiriam tocá-lo.”

O contexto histórico do conto de Kleist, cuja acção decorre nos finais do século XVI, “quando a iconoclastia grassava nos Países Baixos”, é o das disputas entre católicos e protestantes nas vésperas da Guerra dos Trinta Anos. Tematiza o poder redentor (e eventualmente terrificante?) da “misteriosa arte” da música. Quatro irmãos protestantes e outros “malfeitores de todas as idades e classes sociais” que tencionavam boicotar a celebração do dia do Corpo de Deus na cidade de Aachen (Alemanha) são travados pelo “elevado e maravilhoso esplendor” da execução de uma “antiquíssima missa italiana de mestre desconhecido”. Afirma Kleist que “particularmente no ‘Salve regina’ e, mais ainda, no ‘Gloria in excelsis’, era como se todo o povo na igreja estivesse morto” e “nem o pó do telhado da igreja se moveu”. Não custa crer.

Ao contrário de Kleist e de Hoffmann (que entretanto passou de moda…), Wackenroder é praticamente desconhecido em Portugal (fora do âmbito académico e musicológico, é claro) — “embora surja referenciado nas histórias da literatura como o iniciador do romantismo alemão”, lembra Claudia J. Fischer, a tradutora e organizadora desta suíte de contos. Além de um breve e (literalmente) maravilhoso “conto oriental de um santo nu”, publica-se, de sua autoria, e em primeira tradução para a língua portuguesa, uma narrativa que, por si só, justificaria a presente edição da Antígona: “A estranha vida musical do compositor Joseph Berglinger”. A obra de Wackenroder (que morreu com 24 anos) é escassa e uma boa parte dela havia sido publicada por Rita Iriarte no volume Música e Literatura no Romantismo Alemão (Apáginastantas, 1987), mas faltava este conto magnífico que pode exemplificar de forma modelar por que razão é o seu autor tido como “iniciador do romantismo alemão”. Trata-se da biografia (fictícia) de um compositor imaginário. A primeira parte do conto narra a formação sentimental, intelectual e estética do protagonista, um jovem refractário às “ninharias terrenas — autêntica poeira sobre o brilho da alma”, um inadaptado que pensava: “tens de permanecer nesta doce vertigem poética toda a vida, sem interrupções, e toda a tua vida tem de ser uma música”. Na segunda parte, uns anos decorridos, vamos encontrá-lo “vivendo em grande esplendor”, mas, ao mesmo tempo, crescente e tragicamente desencantado com as condições mundanas de produção e recepção da sua obra. “É verdadeiramente a ‘arte’ que temos de venerar e não o artista — esse mais não é que uma mera ferramenta”, clama o compositor. Anunciando a sua intenção de “virar costas a toda esta cultura”, numa carta dirigida ao pai e que, sob certos aspectos, parece preludiar a que Hofmannsthal atribuirá a Lorde Chandos, Berglinger lamenta: “[…] eis que agora o sumptuoso futuro se tornou um miserável presente”.

Um esclarecedor e esclarecido prefácio da tradutora (as relações entre literatura e música no Romantismo alemão são uma das áreas de investigação académica da germanista Claudia J. Fischer) e um posfácio, igualmente substantivo e útil, de Mário Vieira de Carvalho (cujo labor musicológico é vasto e conhecido), completam este volume. Em resumo: uma edição excelente.

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