Museu do Prado defende os seus três Bosch, mas não "com capa e espada"

A poucos dias da grande exposição comemorativa do quinto centenário do pintor holandês, os especialistas da instituição contestam as três desclassificações propostas pelo Projecto Bosch.

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JAVIER SORIANO/AFP

“Estou absolutamente convencida de que são Bosch”, disse a comissária Pilar Silva no final da apresentação da exposição que o Museu do Prado, em Madrid, vai inaugurar na próxima segunda-feira, comemorando o quinto centenário da morte do mestre holandês. É a resposta do museu espanhol, prometida desde Fevereiro, à desclassificação de três pinturas até aí atribuídas ao pintor, proposta pelo Projecto de Investigação e Conservação de Bosch, uma equipa internacional liderada pela Holanda que há seis anos estuda com as últimas tecnologias todo o trabalho deste artista que viveu entre 1450 e 1516 e é considerado um dos mais originais da sua época. As pinturas em causa são As Tentações de Santo António AbadeExtracção da Pedra da Loucura e Mesa dos Pecados Capitais, ou seja, metade de todas as obras que o Prado possui e que fazem da instituição o maior coleccionador de obras originais de Bosch.<_o3a_p>

“O Museu do Prado mantém a autoria”, concluiu esta conhecida especialista do museu espanhol, depois de mostrar uma série de slides com argumentos científicos, estilísticos e documentais. Ouviu-se então um intenso aplauso no auditório que juntava jornalistas espanhóis e estrangeiros, na maior operação mediática de que o museu tem memória.

Miguel Falomir, o director-adjunto de conservação do Prado, acrescentaria depois que “cientificamente" não há nada que faça o Prado "duvidar” que as três obras foram de facto pintadas por Bosch, lembrando que o museu é pioneiro nos estudos do pintor e que prepara esta exposição há duas décadas. “Não é o resultado de uma improvisação”, sublinhou Falomir.

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O Prado tinha prometido responder às desatribuições logo a seguir ao anúncio do Projecto Bosch e fá-lo, notou ainda o director-adjunto, com um catálogo – de 400 páginas – e com esta exposição por onde começou a visita de imprensa, e que inclui 50 trabalhos, entre eles, directamente de Lisboa, As Tentações de Santo Antão, do Museu Nacional de Arte Antiga, uma obra que não saía do país há 24 anos. Vinte e uma pinturas e oito desenhos originais do próprio Bosch, 75 por cento do trabalho que sobreviveu, “o maior núcleo de trabalhos de Bosch alguma vez reunido”, diz o dossier de imprensa da exposição, que também dá a primazia, entre os empréstimos, à peça que veio de Portugal.<_o3a_p>

“O Museu do Prado não é pelo imobilismo e não defende com capa e espada as peças”, continuou o director-adjunto, lembrando que já foram aceites reclassificações no passado, mesmo de obras tão importantes como as atribuídas a Velázquez. As reclassificações propostas pelo Projecto Bosch? “Respeitamo-las mas não as partilhamos."

Interrogado pelo PÚBLICO sobre se nos próximos anos a discussão poderá acabar num consenso, Falomir respondeu que estas polémicas são tão “velhas como a história de arte” e que estas situações acontecem “com quase todos os pintores”. “Isto não é uma ciência exacta, não é matemática ou química, os resultados que saem destas investigações não são válidos em qualquer lugar do mundo. Está sempre em discussão e depende de quem está a discutir os problemas.” Falomir acredita que a exposição “vai ser muito útil para clarificar alguns assuntos”, porque “é a primeira vez em muitas décadas que podemos ver estas pinturas todas juntas”. O director-adjunto do Prado aconselha mesmo os especialistas em Bosch a alugarem um apartamento em Madrid durante os meses da exposição, para olharem para as pinturas e as compararem tantas vezes quanto seja necessário.

"Uma coisa normal"

A resposta do Prado às dúvidas criadas pelo Projecto Bosch sobre a autoria de três das obras da colecção do museu – que o estudo atribuía não ao mestre holandês mas a seguidores seus – quis ser tranquila mas firme. Por isso, cada jornalista que tentou abordar a polémica com Pilar Silva durante a visita guiada que antecedeu a conferência de imprensa foi remetido, com um grande sorriso da comissária, para a apresentação que decorreria logo a seguir: “Só no auditório…”.

Alejandro Vergara, o conservador-chefe do departamento de pintura flamenga e das escolas do Norte do Museu do Prado, anteciparia porém algumas considerações gerais sobre a disputa aos jornalistas estrangeiros: “Gostava que entendessem que é uma coisa normal, acontece muitas vezes. Diferentes autores pensam coisas diferentes; alguns dizem que há 21 trabalhos de Bosch e outros dizem que há 25. Há quatro outras obras [além das três que pertencem à colecção do Prado] que alguns especialistas concordam que são de Bosch e outros não.”

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“Todos” concordam com a nova atribuição a Bosch das Tentações de Santo António do Museu de Kansas City – até agora visto como saída da oficina do pintor ou atribuído a um seguidor – feita pelo projecto holandês, acrescenta Vergara. Com outra das conclusões do Projecto Bosch, pode ler-se no catálogo, Pilar Silva também concorda: a indicação de que há mão de Bosch no Tríptico do Juízo Final que está no Museu de Bruges.

Quando lhe perguntamos se a posição do museu é concordar com estas duas últimas descobertas do Projecto Bosch, mas discordar daquelas que dizem respeito às obras que pertencem ao Prado, Alejandro Vergara não podia ser mais claro: “Exactamente."

Esgrimir argumentos

Pouco depois das 11h, começaram então a ser apresentados os argumentos do Prado no auditório do museu. O primeiro deles, que recorre à dendrocronologia, usada para datar a madeira do suporte da pintura, diz respeito às Tentações de Santo António Abade: o Prado defende que nenhum pintor esperaria tanto tempo para usar uma tábua que já estava disponível em 1464. Pilar Silva considera por isso que Bosch pintou efectivamente o painel no fim da sua carreira, por volta de 1510-15, contrariando assim a tese de que teria sido pintado por um seguidor depois da sua morte, entre 1530-40. A técnica encontrada é semelhante à de trabalhos assinados pelo artista. Os estudos químicos feitos pelo museu aos pigmentos mostram que “nenhum dos materiais que aparecem são estranhos à obra de Bosch”, acrescentou Falomir.

“Não há nenhum argumento documental que afecte as suas obras”, nem no caso da Mesa dos Pecados Capitais. Falomir acrescenta que o Comentário da Pintura, escrito por Felipe de Guevara por volta de 1600, foi mal interpretado, o que não é uma novidade. O texto, ambíguo, não dirá que a pintura é de um seguidor, refere-se antes a este género de pintura.

“Mas os argumentos mais poderosos são os que saem da contemplação das obras”, concluiu Falomir, antes de passar a palavra a Pilar Silva. É preciso ter em conta, quando se analisa a pintura, que a Mesa dos Pecados Capitais não foi pintada sobre carvalho mas sobre madeira de choupo, “numa direcção oposta à do veio”. O seu desenho subjacente, que não se pode pode ver à vista desarmada, mostra que “todas as cenas estão pintadas com pincel com meio líquido como outras obras de autoria indiscutível”, leu-se num dos slides apresentados. E continuou a comissária: é “uma obra de grande originalidade com numerosas modificações entre o desenho [subjacente] e as camadas de pintura”.

Os argumentos estilísticos são vários e foram analisados detalhadamente obra a obra. Em relação à Extracção da Pedra da Loucura, Pilar Silva detém-se sobre os cabelos da figura que está a ser operada pelo falso cirurgião, “feitos com uma liberdade tão característica de Bosch”. Se por questões técnicas usou outro tipo de desenho subjacente numa primeira fase, a seco, muitas outras características do mestre podem ser encontradas na pintura, e mesmo a utilização de um desenho subjacente com meio líquido numa segunda fase. “Estes três trabalhos são dele. Não posso ter outra opinião.”

Agora, há até 11 de Setembro, como sugeriu o director-adjunto, para comparar vezes sem conta as pinturas de Bosch e esgrimir, mesmo sem capa e espada, os vários argumentos do catálogo perante as obras.

O PÚBLICO viajou a convite do Turismo de Espanha

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