Múltiplos sentidos em Almada

A exposição que abriu 2017 na Casa da Cerca: a intermediação do corpo no conhecimento que temos do mundo.

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A intermediação do corpo no conhecimento que temos do mundo

Fazer sentido, com curadoria assinada por Emília Ferreira, abriu a programação da Casa da Cerca para 2017. Como o nome indica, os cinco sentidos tradicionais introduzem uma série de eventos e actividades que declinam de alguma forma esta intermediação do corpo no conhecimento que temos do mundo, pois no fim de contas é disso que se trata. Neste caso, uma exposição colectiva será o acontecimento mais importante em termos de artes visuais, declinando-se a partir daqui tudo o mais que venha a acontecer.

A colectiva inclui trabalhos de onze artistas, com percursos que oscilam entre a completa confirmação pública e o quase total desconhecimento. Emília Ferreira assinala que a inclusão dos artistas na exposição se deveu em parte a propostas que foram chegando à Casa da Cerca, quando não a convites directos em casos pontuais. O conceito, de resto, presta-se a uma investigação demorada que a curadora irá publicar em breve em catálogo de exposição. É que falar dos sentidos equivale não apenas a convocar o modo pelo qual adquirimos conhecimento e experiência, mas também, e de forma mais específica, o modo pelo qual usufruímos da arte.

De facto, a experiência artística é uma experiência fenomenológica, e neste sentido ela faz-se como é evidente através da visão, mas também, e isto é sobretudo consciente a partir da segunda metade do século XX, através de sensações provocadas pelo mundo que nos rodeia que não dependem em exclusivo do olhar – que o ultrapassam, mesmo, deixando-se contaminar por tudo o que nos chega através do olfacto, do toque, do ouvido. É impossível, por exemplo, ver uma dada peça desta exposição que se dirija exclusivamente ao olhar, como as obras de Amélie Ducommun, e abstrair por completo das vozes das crianças que visitam o jardim o o cheiro da flor de laranjeira no pátio. A visão, com o ouvido e o olfacto, neste caso, misturam-se indissociavelmente para criar a sensação estética.

Por outro lado, os cinco sentidos têm sobretudo desde o Barroco um género de eleição na história da arte: a natureza-morta, que unia na pintura de flores, frutos, pautas de música e instrumentos musicais, doces requintados e iguarias de luxo alusões a uma opulência de vida que na época raramente correspondia ao quotidiano das populações. Será este um género que se adapta particularmente bem ao tema, e de que encontramos ecos nas peças de gosto kitsch e técnica esforçada de Baptista Marques, nos desenhos de João Jacinto e, sobretudo, na diversidade de peças em torno do universo vegetal de Gabriela Albergaria, a única a ter realizado uma peça específica para esta exposição: uma magnífica Árvore, um limoeiro abatido por uma tempestade nos jardins da casa, e que aqui surge de feridas expostas e tratadas no adiamento de uma morte inevitável. De certa forma, a silhueta humana repleta de beatas de cigarro apanhadas do chão é também uma espécie de natureza morta, já que a mensagem moral que João Leonardo, o autor, pretende veicular se torna evidente e certeira.

A possibilidade de ouvir não é fácil de traduzir através da arte – nem todos podem criar os 4’33’’ de silêncio que John Cage concebeu em 1952 -, mas Pamela Golden, com uma série de aguarelas sobre um filme de aventuras passado no Iraque, apresentadas com uma playlist tocada pelos soldados norte-americanos durante os bombardeamentos daquela cidade é particularmente eficaz. As melhores peças que trabalham o sentido do tacto vêm assinadas por Ana Rita António, e combinam aspectos do design com formatos pictóricos. Finalmente, na Galeria do Pátio, uma instalação de Edgar Massul dá continuidade a um projecto que o artista vem desenvolvendo há vários anos: um trabalho com lamas de quatro rios portugueses, algo que também convocoa a dimensão temporal na espera da evaporação, na percepção da humidade do lugar, e que encerra de modo feliz a síntese que se pretende obter com “Fazer sentido”. Massul não apenas trabalha com o nosso sentido da visão, extremado até ao limite da invisibilidade, como com o tacto, o cheiro, o ouvir implícito e agora imaginado da água que corre.

Outros artistas presentes não se acordam tão bem com estes que aqui assinalámos, talvez por falta de experiência, talvez por falta de mundo ou, ainda mais simplesmente, por falta de meios de produção. A exposição, que se percebe ter sido realizada com um orçamento reduzido e com um apelo evidente à boa vontade e aos acervos dos próprios artistas, teria beneficiado em muito com mais ambição e maior orçamento. Nem todas as obras presentes aguentam a vizinhança de trabalhos tão bem pensados e conseguidos como os de Gabriela Albergaria ou de Pamela Golden, uma vizinhança que vai ter uma duração exagerada – quase um ano – que decerto os prejudicará ainda mais. Fazer Sentido conta ainda com trabalhos de Ana Mandillo, Pedro Pires e Susana Pires.

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