Morreu Vitor Silva Tavares, um editor radical

Vitor Silva Tavares, fundador da &etc, era um dos mais originais editores portugueses. Morreu aos 78 anos.

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Vitor Silva Tavares em 2008 Nuno Ferreira Santos

Vitor Silva Tavares, 78 anos, morreu nesta segunda-feira de manhã no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde tinha sido internado uma semana antes devido a uma infecção cardíaca. A família pretende fazer uma cerimónia privada e prefere não divulgar publicamente informações sobre a mesma.

Os livros ficam, o editor desaparece. Era fácil ficar horas a ouvir Vitor Silva Tavares porque já ninguém fala como ele, um português de língua afiada e refinada, elegante e pé-descalço (ele diria: “do melhor Gil Vicente”), algo que partilhava com o amigo João César Monteiro, tanto quanto a magreza e o espírito libertário. Em 2014, quando o PÚBLICO falou com ele a propósito da edição da obra escrita de César Monteiro, Vitor Silva Tavares confessou que a morte do cineasta, em 2003, deixara um vazio que não tinha sido preenchido. Silva Tavares referia-se a um vazio pessoal, naturalmente, mas também estava implícito um vazio colectivo. O mesmo acontece agora, com a morte de Silva Tavares, um dos mais originais e radicais editores portugueses. É toda uma geração, de resistência cultural e política, que tem os dias contados.

“Perdemos o último dos resistentes, o pai de gerações e gerações de poetas. Há muita gente que lhe vai sentir a falta. Mesmo muita”, diz Paulo da Costa Domingos, poeta e editor da Frenesi, que se cruzou com Vitor Silva Tavares no início da década de 1970, quando o editor o publicou pela primeira vez, ainda na revista &etc que viria a converter-se na lendária editora com o mesmo nome.

Em 1974, ainda antes do 25 de Abril, Vitor Silva Tavares criou a &etc, uma pequena editora independente que se distingue, até hoje, pelo formato quadrado dos seus livros, pelo seu catálogo de autores e títulos raros e marginais e por se manter praticamente inalterável ao longo de mais de 40 anos de existência, apesar das transformações do negócio editorial. Sempre recusou a ideia de publicar livros para fazer lucro. Entre os autores publicados pela &etc contam-se Herberto Helder (Cobra, 1977), Alberto Pimenta, João César Monteiro, Antonin Artaud, Adília Lopes, Henri Michaux, Sade, Robert Walser, entre muitos outros.

Era também escritor, mais raro do que regular. “Escrevo o que me apetece, quando me apetece. E quase sempre não me apetece”, disse numa entrevista à revista Ler em 2012. Púsias, um livro de poesia satírica, foi publicado este ano numa edição artesanal, pela 50Kg

Do &etc à &etc
Nascido em 1937, Vitor Silva Tavares era um “lisboeta da Madragoa”, como fazia questão de lembrar. E continuava a ser: vivia na Rua das Madres e todos os dias ia a pé para a &etc, uma cave na Rua da Emenda, ao Chiado.

Começou como jornalista em Angola, onde viveu entre 1959 e 1962, no jornal O Intransigente. Já em Lisboa, fez crítica de cinema na Flama e no Jornal de Letras e dirigiu o suplemento literário do Diário de Lisboa.

Tornou-se editor, como dizia, “por mero acaso”. Surgiu o convite para dirigir a Ulisseia, onde publicou Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon, livro anti-colonialista em plena guerra colonial, os surrealistas portugueses – que nenhuma editora publicava – e o primeiro livro de Luiz Pacheco, Crítica de Circunstância, que é apreendido pela PIDE. A &etc começou por ser um magazine de cultura do Jornal do Fundão, onde José Cardoso Pires também escrevia, e foi depois uma revista, entre 1973 e 1974. Por ter começado como magazine, Vitor Silva Tavares continuou sempre a falar da editora no masculino, dizendo "o &etc".

Fazia pequenas tiragens e não reeditava as obras esgotadas, preferindo lançar novos títulos. A única excepção foi O Bispo de Beja, de Homem-Pessoa, poema satírico e anticlerical, que voltou a editar depois de o livro ter sido apreendido em 1980 – seis anos depois do 25 de Abril – por ordem do Ministério Público e os seus exemplares terem sido queimados no Tribunal da Boa Hora durante o julgamento do editor, acusado de abuso de liberdade.

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Uma obra de Alberto Pimenta, de 1977

“Um editor solidário veio propor-me uma co-edição de cinco mil exemplares, o que recusei imediatamente (não queria explorar comercialmente um escândalo desses). Tratava-se de um caso político. A reedição é uma reincidência, um desafio às autoridades”, contou em 2007 ao jornal brasileiro K Jornal de Crítica.

Não fazia promoção dos livros, nos quais imprimia um rigoroso cuidado gráfico – exemplares encadernados à mão, o design das capas influenciado pelo construtivismo russo ou com as ilustrações de Luís Manuel Gaspar - que, a par do formato de falso quadrado (15,5 por 17,5 centímetros), os tornavam absolutamente reconhecíveis e distintos no mercado editorial.

“Talvez fosse um dos últimos editores que tinha uma relação de paixão com as artes tipográficas, absolutamente distinto dos gerentes e gestores das editoras”, diz Eduardo Sousa, editor e livreiro da Letra Livre.

“Quando se diz que o Vitor era um editor radical, não se está só a falar em política ou ideologia. O Vitor era um radical no tratamento da obra gráfica, um editor de livros, não de fotocópias, como há muitos por aí”, diz Paulo da Costa Domingos, que trabalhou de perto com Silva Tavares, a quem reconhece uma “ética inabalável” que se reflectia em todos os aspectos da sua vida, sobretudo no trabalho.

O editor da &etc fazia tudo para não trair “o espírito e a palavra” dos seus autores, diz o poeta, que coordenou o livro de homenagem aos 40 anos da &etc, Uma Editora no Subterrâneo (Letra Livre, 2013). Nunca lhe passaria pela cabeça publicar um texto de alguém de quem não gostasse, que não quisesse ter por perto. “A &etc é como uma impressão digital, é de um indivíduo. O que se publicava na &etc não era sujeito à apreciação de um colégio editorial – o Vitor decidia e estava decidido. Ele gostava ou não gostava e não sentia necessidade de explicar porquê.”

“Ele tinha uma grande abertura para poetas muito diversos e privilegiava os autores que iam surgindo à margem do chamado mainstream. Estava sempre muito atento, desperto”, diz o poeta Gastão Cruz, que foi publicado pela primeira vez por Silva Tavares em 1978 (Campânula). Foi outro poeta, Herberto Helder, que os aproximou. “Já não me lembro como foi, ando a ver isso nas cartas que troquei com o Herberto”. Gastão Cruz lembra que Vitor Silva Tavares só publicava “coisas em que acreditava”, mesmo quando estava entre os primeiros – se não era mesmo o primeiro – a “acreditar” em determinado autor.

A maneira de Silva Tavares trabalhar deixa lastro noutros projectos editoriais, a Frenesi de Paulo da Costa Domingos, a Averno de Manuel de Freitas, a Fenda de Vasco Santos, ou a Hiena de Rui Martiniano, que nasceram à luz da &etc e perpetuaram o seu “espírito”.

“É uma influência óbvia na minha geração de editores independentes, que trabalham com a mesma visão que ele tinha, do livro não como produto comercial mas como objecto cultural”, diz Eduardo Sousa, 58 anos.

“O Vitor contava histórias e ensinava a liberdade, a rebeldia e o humor a quem o rodeava. Desenhava projectos. Concretizava muitos”, recorda o editor Nelson de Matos, que trabalhou com Silva Tavares no suplemento literário do Diário de Lisboa e no Jornal do Fundão.

“Muita coisa do que vivemos hoje já não existe. Sobram os livros, a editora a que ele deu vida e prolongou até à actualidade. Sobra também a sua escrita, por aí dispersa, resistindo. À espera.”

Pedro Piedade Marques conhecia Silva Tavares apenas há três anos, mas é ao editor da &etc e à sua “imensa generosidade” que deve a monografia que vai lançar até ao final do ano, Editor Contra: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite, um volume sobre “outro dos nomes esquecidos” do mundo dos livros em Portugal.

“Não tinha um arquivo organizado, mas tinha uma memória fantástica. E a essa memória devo muitas das histórias que conto sobre o Ribeiro de Mello, sobre aquela Lisboa”, diz o editor deste volume que conta com dois textos inéditos de Silva Tavares.

Piedade Marques tencionava dedicar um outro livro aos três anos e meio em que Silva Tavares foi o responsável editorial pela Ulisseia, na década de 60: “Ele viveu aventuras incríveis com o Luiz Pacheco e com os surrealistas, editou muita coisa proibida. Teve, por exemplo, a coragem de publicar França, a emigração dolorosa, do Nuno Rocha, quando a emigração era um tema completamente tabu, em que ninguém tocava.”

Notícia actualizada dia 22 de Setembro: informação sobre a cerimónia fúnebre

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