Morreu a mulher que aprendeu com os gregos que as coisas belas são difíceis

Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017) foi durante décadas o rosto dos Estudos Clássicos em Portugal. Deixa uma obra vastíssima e um exemplo de determinação e rigor. As suas traduções das grandes tragédias gregas são uma referência, assim como os trabalhos que fez à volta da literatura portuguesa

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Maria Helena da Rocha Pereira em 2001 Paulo Ricca/Arquivo
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Os seus olhos azuis, tão claros e incisivos quanto as suas ideias, garantem colegas e amigos, denunciavam com facilidade grande entusiasmo quando falava dos gregos e dos latinos, quer fosse na literatura, quer fosse na ciência ou na história de arte. “Eu vivo com os antigos”, dizia, os antigos que estudou durante décadas e que, aparentemente, nunca deixaram de lhe despertar a curiosidade.

Maria Helena da Rocha Pereira, a mais importante especialista portuguesa em Estudos Clássicos, morreu esta segunda-feira no Porto, aos 91 anos, avançou ao PÚBLICO fonte próxima da família. A cidade onde nasceu é também a cidade onde será sepultada, depois das cerimónias fúnebres que se realizam a partir das 15h de terça na Igreja da Lapa.

“Vou ensinar aquilo que sei, [digo aos meus alunos]. Em muitos casos vamos ficar na dúvida. A dúvida é científica. Às vezes mais científica que a verdade”, afirmava numa entrevista ao Diário de Notícias, em 2003, sublinhando o gosto pelo ensino, actividade que encarou como uma verdadeira missão, fazendo da vida académica o seu “sacerdócio”. Em 1956 tornou-se a primeira mulher doutorada pela Universidade de Coimbra (UC), instituição onde deu aulas até se jubilar, em 1995, e que em 1964 faria dela a sua primeira catedrática.

Com mais de 300 obras no currículo, entre livros e artigos publicados em Portugal e no estrangeiro, Rocha Pereira foi responsável pela divulgação da cultura clássica a várias gerações que foram lendo os seus dois volumes dos Estudos de História da Cultura Clássica (o primeiro dedicado à cultura grega, o segundo à romana), de 1965, as suas compilações de textos gregos e latinos (Hélade e Romana), e as traduções que fez das grandes tragédias de Sófocles (Antígona, Ajáx) e Eurípides (Medeia, Troianas, As Bacantes).

“Aprendi as línguas como acesso às respectivas literaturas: era para ler os grandes autores no original. Não há nada que substitua o original”, dizia esta mulher que tanto se dedicou à tradução, embora não gostasse de o fazer. E é porque tanto traduziu que hoje os alunos de Estudos Clássicos espalhados pelo país têm “ferramentas de trabalho incríveis”, assegura Fátima Silva, uma discípula que é hoje professora na UC e que faz questão de sublinhar a sua "competência extrema" e o “rigor absoluto” que colocava em tudo o que fazia. “Mesmo depois de se jubilar continuou a acompanhar teses e a ler, a estudar. Estava sempre na linha da frente, actualizada, porque nunca perdeu o desejo de saber mais, nunca perdeu a curiosidade”, diz ao PÚBLICO.

Oxford, uma aventura

Nascida no Porto, em 1925, numa família com dinheiro e que vivia num palacete no meio de um jardim, Maria Helena da Rocha Pereira deu provas da sua inclinação para o ensino desde muito cedo. Tendo aprendido a ler aos quatro anos, aos seis já ensinava as empregadas da casa a fazê-lo. O pai, um médico e professor que conseguia ser muito austero mas também lhe dizia versos da Eneida de cor, e a mãe, que se encarregava da educação de Rocha Pereira e da sua irmã mais velha que haveria de se formar em Matemática, fizeram questão que as filhas completassem o liceu e, mais tarde, o curso universitário, algo que na época provocou escândalo. “As meninas de bem iam para o colégio” não para o liceu, lembrava na mesma entrevista de 2003, e, naquela altura, uma mulher aspirar a uma carreira académica era algo “impensável”. Mas foi precisamente isso que fez, até ao topo, com uma determinação imensa.

Quando chegou à Universidade de Coimbra foi-lhe fácil acabar o curso de Filologia Clássica com 17 valores, difícil foi convencer o conservador meio académico de que não queria ficar por ali. Só um professor, o de Grego, em toda a UC a encorajou a continuar e foi ele que a aconselhou a ir para a Universidade de Oxford, que tinha na época um dos melhores centros de estudos clássicos.

“É incrível pensarmos que ela, uma menina do Porto, parte sozinha naquela altura para estudar em Oxford, quando quem saía, raríssimos, o fazia para Paris... Uma mulher no Portugal do Estado Novo, fechado a tudo, numa área dominada por homens. Foi precisa uma enorme coragem, determinação, vontade de aprender, coisas que a Maria Helena da Rocha Pereira teve toda a vida”, diz Frederico Lourenço, tradutor e professor de Grego na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

A sua ligação aos estudos clássicos que se faziam no Reino Unido e também na Alemanha – “ela falava muito bem alemão e isso ajudou muitíssimo porque lhe deu acesso a fontes que muitos não liam por não estarem traduzidas” – permitiu abrir Portugal nesta área, defende o também escritor de 54 anos, Prémio Pessoa 2016.

Rocha Pereira chegou pela primeira vez a Oxford em 1950, aos 25 anos, quando Londres estava ainda sob racionamento e na universidades havia uma série de professores fugidos ao nazismo. Foi lá que fez parte da investigação que levaria ao seu doutoramento, cuja tese defendeu em 1956 (Concepções Helénicas de Felicidade no Além, de Homero a Platão).

Bastaram-lhe quatro anos e meio para concluir um doutoramento que poderia ter feito em seis, gostava de recordar. Quando terminou a tese não havia júri para a avaliar e, como era impensável convidar um professor estrangeiro para arguir, Rocha Pereira teve de esperar um ano e meio para a poder defender. “O meu doutoramento foi o primeiro de uma senhora numa universidade que tinha 666 anos, na altura. Eu queria atingir essa meta, indispensável para poder continuar e para ensinar. Gosto muito de ensinar.”

Foi também em Inglaterra que fez uma das especializações de que mais se orgulhava, em vasos gregos, com aquele que continua a ser dos maiores estudiosos na área, John Davidson Beazley (1885-1970), professor de arqueologia e arte clássicas (a ele se deve a categorização dos vasos gregos segundo o seu estilo). Dela resultou aquela que é para Fátima Silva, 66 anos, professora catedrática do Instituto de Estudos Clássicos de Coimbra, uma das suas obras mais importantes, Greek Vases in Portugal (1962).

"O que interessa é o mestre vivo"

Terminado o doutoramento, Rocha Pereira continuou a leccionar e a estudar, publicando sempre o que escrevia. Em 1964 chegaria a etapa seguinte, o concurso para professora catedrática em que seria aprovada por unanimidade. O dia em que, pelo braço do pai, subiu a escadaria da universidade para prestar provas está entre os momentos de grande felicidade do seu percurso. Talvez o equiparasse, de certa forma, a uma condução ao altar em dia de casamento, algo muito comum para as mulheres da sua geração, mas que nunca aconteceu na vida de Maria Helena da Rocha Pereira. Casar e ser mãe era algo que só concebia num regime de absoluta dedicação, algo que não era, por isso, compatível com a docência. E, na hora de escolher, escolheu ensinar, explicava aos que lhe perguntavam por que abdicara de constituir família.

Rocha Pereira fez do ensino a sua missão, dedicando-se de forma invulgar à vida universitária, continua Fátima Silva. De uma “objectividade rara”, espalhou discípulos por várias universidades do país porque, garante esta sua antiga aluna, entendia ser dever de um professor deixar uma escola. “Um professor que não crie discípulos não é completo […]. O que interessa é o mestre vivo”, defendia.

Delfim Leão, director da Imprensa da Universidade de Coimbra, é um desses discípulos. Foi aluno e assistente de Rocha Pereira, que também orientou a sua tese de doutoramento. É este professor de História da Cultura Clássica, uma das cadeiras que a investigadora leccionou durante décadas, que está à frente do programa editorial que está a disponibilizar, em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, dez volumes que reúnem textos que Rocha Pereira escreveu e traduziu ao longo da sua carreira (em Maio saem mais dois, um com traduções de poetas gregos com destaque para os grandes trágicos como Sófocles e Eurípides, o outro inteiramente dedicado à Arte Antiga).

Aos 47 anos, este coordenador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da UC explica por que razão se pode dizer sem medo de errar que Rocha Pereira “refundou os estudos clássicos em Portugal”, dando-lhes uma dimensão internacional inédita até então: “A sua formação em Oxford junto de grandes nomes dos estudos clássicos, o que escreve sobre os vasos gregos e os inúmeros artigos que publica no estrangeiro reflectem a abertura que ela impôs nesta área.”

Frederico Lourenço concorda, chamando a atenção, num breve texto de cinco parágrafos que publicou no Facebook, para a edição crítica da obra completa do geógrafo Pausânias que fez para a editora alemã Teubner, “uma subida ao topo do Olimpo académico que, até hoje, nenhum português conseguiu emular”, escreve o tradutor.

Lourenço nunca a teve como professora porque estudou em Lisboa, mas leu muito do que ela escreveu e contou com Rocha Pereira no júri do seu doutoramento. “Havia um certo terror quando se sabia que a professora fazia parte do júri, simplesmente porque ela era de uma exigência extraordinária, em primeiro lugar consigo mesma, e depois com os outros.”

Para este professor, tradutor de clássicos como Odisseia e Ilíada, Rocha Pereira é um exemplo de dedicação à cultura e ao ensino. Entre as muitas obras fundamentais que deixou, salienta a tradução que fez de A República, de Platão. “A professora Rocha Pereira dá-nos uma panorâmica extraordinária da cultura grega com os textos de Sófocles, Eurípedes, mas a mais fantástica das suas traduções é, na minha opinião, A República. É uma tradução que vai ficar para sempre porque é de uma imensa qualidade. E estamos a falar de um texto que é dificílimo de traduzir porque obriga a conhecimentos de grego muito exigentes e a um enquadramento filosófico muito sério.”

“Sempre me surpreendeu que uma pessoa desta envergadura nunca tivesse recebido o prémio Camões ou o prémio Pessoa”, diz o editor portuense da Modo de Ler, José da Cruz Santos, responsável pelas mais recentes edições (na Asa e na Guimarães) das duas grandes antologias de Maria Helena Rocha Pereira – a Hélade e a Romana –, e ainda de Portugal e a Herança Clássica (2004), que considera “um livro importantíssimo”, e que mostra bem que as leituras da professora de Coimbra estavam longe de se restringir à sua área de especialidade académica. “Tem nesse livro dois capítulos muito interessantes sobre Camilo, e também deixou um trabalho sobre Guerra Junqueiro, escreveu um texto fantástico sobre Eugénio de Andrade, e interessava-se pelo Aquilino, o Torga, o Manuel Alegre”.

Lamentando que o Porto “não tenha feito por ela o que deveria ter feito”, mas contente por ter sabido que a autarquia estará a ponderar homenageá-la na feira do livro do próximo ano, Cruz Santos observa que “não é por acaso que a Hélade e a Romana são obras que nunca foram ultrapassadas, ninguém se arriscou a aparecer com novas edições que pudessem fazer frente às dela”. E conta que, nas últimas reedições revistas da antologia da poesia latina, Maria Helena Rocha Pereira foi dispensando algumas traduções antigas feitas por outros autores que ainda aproveitara nas primeiras versões, substituindo-as por traduções da sua própria lavra. Com uma só excepção. “Manteve sempre as traduções de Ovídio feitas pelo Bocage, porque dizia que era impossível fazer-se melhor.”

Rocha Pereira, mostra-o bem o seu percurso académico, não recuava perante nenhuma dificuldade. Foi com ela, aliás, que Delfim Leão diz ter aprendido a nunca desistir. O que mais o impressionou sempre foi a forma como conciliava uma “grandeza intelectual inalcançável” com uma “generosidade incrível” para com os seus alunos: “Ela não partilhava apenas os seus conhecimentos, aquela maneira que tinha de contar histórias sobre a Grécia Antiga, partilhava também a sua biblioteca pessoal, durante muito tempo bem melhor do que a da faculdade no que à História da Cultura Clássica dizia respeito. Estava sempre aberta para nós.”

Como o PÚBLICO destacava em 2006, quando lhe foi atribuído o prémio Universidade de Coimbra, um dos muitos que ganhou, a autora estudou as influências clássicas na literatura e cultura portuguesas, analisando inúmeros autores — de Camões a Pessoa, passando por Camilo e Torga, entre muitos outros. Trabalho recolhido nos volumes Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (1972), Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (1982) e Portugal e a Herança Clássica e Outros Textos (2003). O latim medieval também foi alvo da sua investigação, reunida no volume Pedro Hispano: Obras Médicas (1973), Vida e Milagres de São Rosendo (1970), Vida de Santa Senhorinha (1970) e Vida de São Teotónio (1987).

O que fizeram os gregos e os romanos ajuda a explicar o que somos hoje, defendia, e é por isso que a contemporaneidade lhe interessava. “Eu vivo com os antigos”, dizia numa entrevista a Alexandra Lucas Coelho nas páginas do PÚBLICO, em Setembro de 2001, para acrescentar em seguida que os homens não tinham mudado assim tanto desde os poemas homéricos que são, “talvez”, do século VIII a.C.: “Em relação aos antigos, a diferença espiritual, intelectual não é tão grande como parece: o homem é sempre o mesmo. Infelizmente, não perde os defeitos que tinha, por vezes não conserva as virtudes.” E continuava: “Há Antígonas por toda a parte, na América, em países africanos… As grandes tragédias gregas vão à essência do homem, do que o homem pode viver. E continuam entre nós, em metamorfoses do original.”

Não sabemos o que Maria Helena da Rocha Pereira gostaria que sobre ela se dissesse depois da sua morte porque, como afirmou numa entrevista, nunca pensou escrever o seu epitáfio e não sabia conceber o infinito. Citava os gregos para dizer que a vida lhe ensinara, isso sim, que as coisas belas são difíceis. O que não é pouco.

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