Morreu Dick Gregory, o cómico que também era um ícone dos direitos civis

Dick Gregory, que quebrou barreiras raciais dentro e fora dos palcos, morreu no sábado aos 84 anos.

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Dick Gregory, lenda do universo da stand-up e dos direitos civis Lucas Jackson/REUTERS

O norte-americano Richard Claxton Gregory, mais conhecido como Dick Gregory, morreu no sábado num hospital em Washington D.C., vítima de insuficiência cardíaca. Tinha 84 anos. Nascido pobre em St. Louis, no Missouri, foi atleta e militar e posteriormente tornou-se um bem-sucedido e pioneiro cómico de stand-up. Ao lado de nomes como Mort Sahl e Lenny Bruce, fez parte de uma das primeiras gerações de cómicos que subiram a um palco para contar as suas próprias piadas, dizer o que lhes ia na cabeça e falar sobre a actualidade, formato que entretanto se popularizou. Paralelamente, quebrou barreiras raciais e foi um militante activista político que marcou a época dos direitos civis norte-americanos, tendo continuado a vida inteira a lutar por aquilo em que acreditava. Nomes como Bill Cosby ou Richard Pryor diziam-se altamente influenciados por ele, e Bill Clinton, o ex-presidente dos Estados Unidos, era fã – algo que não era recíproco.

Antes de Gregory, havia cómicos negros extremamente bem-sucedidos, mas que raramente conseguiam visibilidade no mundo dos brancos. Gregory ajudou a mudar isso. Nos clubes nocturnos, os entertainers negros podiam cantar e dançar e reproduzir os estereótipos que lhes eram associados, mas não falar do que lhes estivesse na cabeça. Isso estava reservado aos brancos. Um dia, Hugh Hefner, o fundador da revista Playboy, viu-o a actuar num clube de negros em Chicago ao lado de nomes como Count Basie ou Sammy Davis Jr., que atraíam público branco. Ficou impressionado e pouco depois contratou-o para substituir, no primeiro clube da Playboy, em Chicago, outro cómico que não queria actuar nesse dia, Irwin Corey.

Na altura, o Tonight Show apresentado por Jack Paar era a maior montra de cómicos dos Estados Unidos. Cómicos de stand-up negros iam lá actuar, mas nunca eram convidados para ficar no sofá a conversar com Paar, a maior honra possível para alguém com tal profissão, e que quase sempre equivalia a sucesso garantido – um modelo que perdurou quando Johnny Carson tomou as rédeas do programa em 1962. Depois de um perfil na revista Time, Gregory foi convidado para actuar, mas recusou-se a ir ao programa sem o deixarem sentar-se no sofá. Foi assim que se tornou o primeiro cómico negro a fazê-lo, abrindo a porta para os muitos outros que se lhe seguiram – uma dívida que ainda é hoje reconhecida: num post do Instagram, Chris Rock chamou-lhe “o meu herói” e disse que a América que o tinha produzido ainda existia. Antes de ir ao programa, Gregory recebia 50 dólares por semana (42,50 em euros). O salário passou logo para 25 mil (21 mil euros) após a ida ao sofá.

A falar na CBC, estação de televisão canadiana, em 1962, explicou que o facto de ser negro influenciava a sua comédia e o seu trabalho, mas não era o foco do que fazia, e que quando queria papéis como actor – algo que aconteceu muito pouco ao longo dos seus mais de 50 anos de carreira, mas deu alguns momentos memoráveis, como quando fez de sol na subvalorizada e esgrouviada falsa série cómica para crianças Wonder Shozen – não precisava que eles fossem escritos para negros, ele próprio se encarregaria de os tornar negros. É uma questão que continua actual. Aliás, o sucesso de Gregory transformou-o, nos anos 1960, num comentador de temas raramente abordados na televisão (alguns dos quais ainda hoje são relevantes), que via de uma perspectiva afro-americana. Em 1965, no The Merv Griffin Show, por exemplo, falou sobre a brutalidade policial sobre pessoas negras, algo que continua na ordem do dia.

Apesar de abordar esses assuntos na sua comédia, Gregory queria que esta pusesse o humor em primeiro lugar e a mensagem em segundo. Ainda assim, como figura que singrou no mundo dos brancos, chamou a atenção para muitos dramas que assolavam a população negra. Isso ficou à vista numa das suas piadas mais famosas, aquela em que falava de uma ida a um restaurante no Sul dos Estados Unidos durante a segregação racial e da resposta que deu à empregada que lhe disse “não servimos pessoas de cor aqui”: “Não há problema, eu não como pessoas de cor. Traga-me um frango frito.”

Com a ascensão do movimento dos direitos civis norte-americanos e o crescimento da barba, que passou a substituir o bigode e se tornou uma imagem de marca, foi-se dedicando ao activismo político, escolhendo cada vez mais essa sua faceta em detrimento da comédia e até da própria família, algo que afectou bastante a sua carreira. Chegou a ser preso, em Birmingham, no Alabama, em 1963; fez inúmeras vezes greve de fome e levou um tiro na perna em Watts, em 1965. Com o activismo na cabeça, candidatou-se à presidência da câmara de Chicago em 1967 e à presidência dos Estados Unidos no ano seguinte.

Além disso, lançou vários álbuns de comédia (o último dos quais, You Don’t Know Dick, saiu no ano passado) e alguns livros, estando o derradeiro, Defining Moments in Black History: Reading Between the Lies, agendado para sair a 19 de Setembro, quando se cumprirá exactamente um mês após a morte do cómico.

E não só: cantou com o seu amigo John Lennon no coro de Give peace a chance, abriu concertos de Nina Simone e falou no documentário que Liz Garbus realizou sobre a cantora, What Happened, Miss Simone?, cruzou-se com Martin Luther King, Jr., desenvolveu, nos anos 1980, um pó para ajudar a emagrecer e toda uma dieta vegetariana; em 2012 foi preso ao lado de George Clooney quando protestava contra o genocídio no Sudão e espalhou teorias da conspiração sobre a morte de Malcolm X, que chegou a acusar Gregory de ser um fantoche da comunidade branca para angariar votos negros.

Não era a única teoria da conspiração na cabeça e nas palavras de Gregory. Ele tinha-as para todos os gostos, sobre as mortes de Martin Luther King, Jr. e do amigo John Lennon, passando pelos irmãos Kennedy e por John F. Kennedy, Jr., bem como sobre o 11 de Setembro ou a ida do homem à Lua (que, alegava, nunca tinha acontecido). Tudo orquestrado, dizia, por pessoas poderosas que puxam os cordelinhos do sistema.

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