Agora sim, Trisha Brown parou de dançar

Pensava com o corpo, não apenas com a cabeça, o que fez dela uma das mais extraordinárias bailarinas do seu tempo e, sobretudo, uma das mais influentes coreógrafas de todos os tempos: depois de Merce Cunningham, a dança pós-moderna perdeu outra das suas figuras fundadoras.

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Trisha Brown em Set and Reset (1987) Jack Mitchell/Getty Images
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Espectáculo da companhia de Trisha Brown no Porto, em 2011 PAULO PIMENTA

Em 2008, quando uma instituição de referência do tamanho do Walker Art Center decidiu que um ano inteiro não era demasiado para festejar adequadamente os múltiplos saltos quânticos de Trisha Brown que fizeram mover a arte contemporânea ao longo de mais de quatro décadas, a peça central do programa das festas acabou por ser não uma selecção das suas peças coreográficas mas uma exposição que reunia desenhos, instalações e performances debaixo de um título surpreendentemente aberto para uma obra em vias de se fechar para sempre: So That the Audience Does Not Know Whether I Have Stopped Dancing ("Para que o público não saiba se eu parei de dançar", em português). Três anos depois, em 2011, a coreógrafa que paralelamente com Merce Cunningham (1919-2009) redefiniu o paradigma da dança contemporânea a partir da América estreava as suas três derradeiras peças (I’m going to toss my arms – if you catch them they’re yours, Les Yeux et l’âme e Rogues, a última das quais pudemos ver em 2015 na Culturgest, em Lisboa); agora, parou definitivamente de dançar: "É com grande tristeza que partilhamos a notícia de que a artista Trisha Brown (n. 1936) morreu a 18 de Março em San Antonio, no Texas, depois de uma doença prolongada", anunciou, no Twitter, a companhia que fundou em 1970 e que deixou de dirigir em 2013.

Severamente debilitada há vários anos por uma demência vascular, Trisha Brown era já uma figura cada vez mais ausente dos estúdios da rua 38, em Nova Iorque, onde a sua companhia continuava a trabalhar (e de onde continuava a partir para longas digressões internacionais). Comprometida desde a fundação com a preservação e a difusão do seminal corpo de trabalho que a coreógrafa criou desde o início da década de 60, a Trisha Brown Dance Company é agora de forma ainda mais pungente a fiel depositária de um repertório prodigiosamente extenso, e prodigiosamente fundador, que acompanha todas as aventuras da dança pós-moderna tal como ela foi inventada pelo colectivo Judson Dance Theater numa igreja em Greenwich Village, primeiro, e em 14 telhados da esquina da Broadway com a Houston Street, mais tarde, quando Trisha Brown declarou, com Roof Piece (1971), que a sua dança não tinha nem nunca teria medo de nada: nem das alturas, nem do silêncio, nem do tumulto da grande cidade onde aterrara exactamente dez anos antes, vinda de outra América.

Também para ela foi um salto quântico, a passagem da América profundamente rural de Aberdeen, no remoto estado de Washington, onde nasceu em 1936, à Nova Iorque de todas as revoluções por minuto, cuja febre acabaria por contaminá-la – com passagens pelo Mills College, de Oakland, onde se formou, e pela academia informal que Anna Halprin, outra pioneira da reconfiguração da dança norte-americana, fundara na viragem para os anos 60 em São Francisco. Chegada a Nova Iorque, começou por expandir os limites da disciplina no quadro furiosamente interdisciplinar e furiosamente colaborativo do Judson Dance Theatre, ao lado de companheiros de estrada como Yvonne Rainer, Lucinda Childs, Steve Paxton ou Deborah Hay. A partir daí, desenvolveu a sua gramática muito pessoal, uma gramática que rejeitou todo o academismo e todo o virtuosismo do cânone fixado por Martha Graham e que resgatou comportamentos, rotinas e tarefas até aí desqualificados – e às vezes espantosamente próximos dos gestos e dos padrões mais ou menos involuntários do dia-a-dia –, e que explorou continuamente ao longo de mais de cem coreografias, seis óperas (a primeira das quais foi L’Orfeo, de Monteverdi, em 1998) e um número indeterminado de desenhos actualmente incorporados em colecções de museus tão incontornáveis como o MoMA, de Nova Iorque, o Reina Sofía, de Madrid, ou o Centro Pompidou, de Paris. Estava no ar do tempo, o vaivém ininterrupto entre todas as artes, performativas e não performativas, mas no caso de Trisha Brown o vaivém era  inultrapassável: "Envolvo-me com facilidade no mistério do espaço. Sinto a mesma adrenalina e a mesma aceleração do pulso quando entro no papel e quando entro no palco."

Uma das mais extraordinárias bailarinas do seu tempo (e a mais extraordinária bailarina das suas próprias peças, como notava o New York Times no seu obituário), Brown entrou inúmeras vezes no palco (fez especial furor o seu dueto com Mikhail Baryshnikov em You Can See Us, de 1996), mas o seu legado também passa pelo meticuloso trabalho de bastidores que desenvolveu desde os primórdios da companhia (inicialmente composta apenas por mulheres), transmitindo pessoalmente técnicas que, em muitos casos, foi a primeira a utilizar na dança (como na série Accumulations, criada a partir de sequências matemáticas), ou estruturando materiais gerados pela improvisação pura e dura que via acontecer à sua frente. “A Trisha foi uma pioneira, muito curiosa, muito exigente em relação à criatividade. Estava sempre a pensar no processo, cada peça era uma investigação sem fundo”, explicava em 2015 ao PÚBLICO Carolyn Lucas, que foi sua assistente entre 1993 e 2003 e é uma das actuais directoras artísticas da companhia.

A chegada da sua obra ao palco não foi, porém, imediata: formada na iconoclastia da vanguarda nova-iorquina, Trisha Brown recusou o proscénio até 1979 (tal como durante muito tempo recusou qualquer intromissão da música, até se fartar da "maldita tosse" dos espectadores), preferindo modos e espaços de apresentação não convencionais como os telhados de Roof Piece ou as paredes de uma galeria de Walking on the Wall, também de 1971. A mudança que então se operou não foi só de escala, foi também de método: iniciavam-se aí as suas colaborações com parceiros como Robert Rauschenberg, Donald Judd ou Laurie Anderson, com quem pôde experimentar "interacções e intersecções artísticas" determinantes para a sua própria evolução como coreógrafa – casos de Set and Reset (1983) e de Newark (Niweweorce) (1987), duas das suas mais celebradas peças, ambas apresentadas em 1987 na Gulbenkian, quando a Trisha Brown Dance Company fez a sua primeira aparição em Portugal, no âmbito dos Encontros Acarte. Numa das últimas, I’m going to toss my arms – if you catch them they’re yours, a cenografia era do seu próprio marido, o artista Burt Barr, que morreu no ano passado.

Embora ainda não tenha sido emitida nenhuma declaração formal sobre o futuro da estrutura para a qual criou a esmagadora maioria das suas peças, é provável que a Trisha Brown Dance Company – que, depois dessa primeira visita aos palcos portugueses, voltaria em 1995 para se apresentar na Culturgest com um programa que incluía uma das peças que a coreógrafa mais maravilhosamente dançou, If you couldn't see me (1994) e em 2000 a convite do Centro Cultural de Belém, onde apresentou entre outros trabalhos a versão coreográfica da ópera L’Orfeo –  continue a manter viva uma obra que, várias décadas depois, continua fulgurante. “Não estamos preparados para parar de apresentar a obra dela”, confessava Carolyn Lucas a poucos dias da chegada da companhia a Lisboa para duas apresentações na Culturgest, onde passado e presente se cruzaram num programa que ia de 1981 (Son of Gone Fishin’) a 2011 (Rogues), passando por If you couldn’t see me (1994), e por PRESENT TENSE (2003). Na altura, Trisha Brown estava já demasiado fragilizada para acompanhar a companhia; com a sua morte, diz agora Gil Mendo, o programador de dança da instituição, desaparece “uma figura importantíssima da dança contemporânea, fundamental para toda uma geração de coreógrafos contemporâneos, seja pela influência artística, seja pelos ensinamentos técnicos”.

Também Cristina Grande, programadora do serviço de artes performativas da Fundação de Serralves, por onde a companhia de Trisha Brown passou duas vezes (primeiro em 2008, no quadro da exposição Robert Rauschenberg: Em Viagem 70-76, e depois em 2011, quando ali apresentou um extenso programa de Early Works), lamenta profundamente a morte da coreógrafa que foi um dos pilares da dança pós-moderna e é ainda “uma referência para a dança que se faz hoje”: “Nunca viajou para o Porto, porque já não estava bem. Mas também por isso é como se estivéssemos a aguardar a sua vinda, porque achamos sempre que estas pessoas não morrem. E efectivamente não morrem, porque o legado fica, na companhia, mas também nas obras, nos bailarinos que dançaram com ela, nos que experimentaram o seu ensino.”

Irredutivelmente física, a obra de Trisha Brown é, efectivamente, sobretudo uma forma de pensamento. “Para começar, não penso que o meu corpo não pense”, respondeu quando lhe perguntaram se havia “uma ligação íntima” entre o seu movimento e o seu pensamento. Entre as primeiras peças nos telhados de Nova Iorque às últimas criações de palco que criou antes de se retirar da dança e do mundo, é possível que a certa altura ela tenha parado de dançar – mas nunca deixou de pensar com o corpo. Com Luís Miguel Queirós

Notícia corrigida às 10h37 de 21/03, acrescentando informações sobre as vindas da Trisha Brown Dance Company a Portugal em 1987 (Encontros Acarte/Fundação Calouste Gulbenkian) e 1995 (Culturgest)

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