Morgan Delt: o passado é hoje e agora

Atraído pelo psicadelismo dos anos 1960 e devoto da sci-fi de outras décadas, o músico californiano fecha-se em casa para inventar novos mundos. Som de ontem, tecnologia de hoje, como ouvimos no óptimo Phase Zero. Esta sexta-feira, estreia-se em Portugal.

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Aaron Giesel

Phase zero é um termo militar utilizado pelo exército americano. Define o momento de acalmia que sucede ao fim de uma guerra e que antecede o início (inevitável?) do próximo confronto. “É o momento descendente de um ciclo interminável”, comenta Morgan Delt desde Topanga County, pequena vila idílica nas montanhas de Los Angeles. Não é exactamente sítio que associemos a jargão militar. “Gostei da expressão porque me soa a título de um velho filme sci-fi. Pareceu-me muito cool”, explica Morgan Delt. Assim já faz mais sentido. Soa tão “cool”, digamos então, como a música deste músico caseiro que tem passado os últimos anos a passear pelo verde das montanhas e desfiladeiros de Topanga Canyon e a gravar no seu estúdio caseiro música para um tempo imaginário – os anos 1960 psicadélicos reinventados com tecnologia contemporânea.

Phase Zero, o segundo álbum, será apresentado pela primeira vez em Portugal esta sexta-feira, no Musicbox, em Lisboa. Morgan Delt será o prato principal da festa de aniversário da promotora independente lisboeta Puro Fun, num concerto com primeira parte assegurada pelos portugueses Zarco (22h30). A celebração inclui também uma parceria com outra promotora independente, a portuense Macho Alfa, que se concretizará com os concertos dos Ducktails de Matt Mondanile, de James Ferraro e de Typhonian Highlife no Passos Manuel, no Porto, também esta sexta-feira, e do mesmo conjunto de músicos, no dia seguinte, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. Quando sábado chegar, já Morgan Delt estará a viajar em direcção a Madrid para continuar a levar Europa fora a sua música tão claramente filha da Califórnia – a Califórnia que os discos dali saídos desenham na nossa mente.

Na sua música, cantada num quase sussurro em tom de vigília, ecoa a luminosidade folk-rock dos Buffalo Springfield ou o folk-rock enquanto raga oriental dos Byrds. Mas é uma outra versão dessa música aquilo que ouvimos, construída pela sobreposição de diversas camadas de som (guitarras acústicas e eléctricas, samples, sintetizadores, reverberações) e abrindo as canções para um espaço imaginário onde pioneiros da electrónica (como os Silver Apples), sonhadores de olhos postos nas estrelas (Syd Barrett chamado à terra) e artesãos eléctricos armados de gravadores de quatro pistas e imaginação delirante (sim, estamos a pensar nos inigualáveis Olivia Tremor Control) se reúnem num mesmo espaço. A estreia em álbum, homónima, saiu em 2014 e mostrava-o enquanto cruzador de tempos e espaços que se dedicava à invenção de novos lugares, de um antes que nunca existira.

Não surpreende que Morgan Delt refira várias vezes a importância que os filmes sci-fi de décadas passadas têm no seu trabalho. “Actualmente, um filme sci-fi é um filme de acção que por acaso se passa no espaço e em que os efeitos especiais são o princípio e o fim de tudo. Os velhos filmes exploravam diferentes ideias de futuro possíveis e isso é o mais interessante no sci-fi”. O seu trabalho é, precisamente, a aplicação dessa ideia à música.

Phase Zero, o álbum de estreia na histórica Sub Pop (depois de lhe ouvirem o primeiro longa-duração, os responsáveis da editora não perderam tempo a chamá-lo até si), abandona uma certa rarefacção sonora em favor de maior nitidez. O mistério continua, tal como a ideia de criar música capaz de “explorar emoções diferentes, estranhas, que normalmente não são contempladas numa canção pop”, como afirma ao Ípsilon. “Tentei incluir uma vertente mais electrónica no álbum, influenciado por bandas como os Silver Apples, United States of America, White Noise ou os mais recentes Broadcast”, explica. E é então que nos dá conta daquilo que o guia na viagem enquanto Morgan Delt (ainda não tínhamos dito, mas não é o seu nome, é o do protagonista de Morgan!, filme britânico de 1966 onde encontrávamos David Warner e Vanessa Redgrave).

“Interessa-me trabalhar a ideia de uma história alternativa”. Ou seja, recorrer apenas “aos sons disponíveis naquela era [o final de anos 1960], mas utilizando a tecnologia de hoje”. Explicado de outra forma: “Naquela altura, os Silver Apples não poderiam ser uma grande influência porque eram poucos os que tinham a possibilidade de os ouvir. E se toda a gente tivesse um disco dos Silver Apples em casa, em 1968?” Se isso acontecesse, o resultado, imaginou-o Morgan Delt, seria este Phase Zero que editou em Agosto do ano passado.

Passou alguns anos, na adolescência, em bandas de surf e garage-rock. Interessou-se depois pela electrónica da Warp, pela música de um Aphex Twin. “Durante muito tempo evitava fazer música com elementos que soassem a antigo”. Até que um dia tentou e chegou a uma conclusão: “Sou muito melhor a trabalhar com esses sons”. Morgan Delt nasceu dessa tomada de consciência, reunida a outra certeza que já ganhara há algum tempo: a de que funciona melhor sozinho que em ambiente de banda. Junte-se uma coisa à outra, acrescente-se a Califórnia, ou melhor, aquela zona específica da Califórnia que habita, Topanga Canyon, e está feito o mapa da sua música.

“Há muito, muito tempo que Los Angeles atrai gente diferente. Há movimentos religiosos bizarros a aparecer desde a viragem para o século XX, cultos estranhos, artistas inconformados”, conta. “Ao mesmo tempo, há muita gente a chegar para vingar no grande mainstream da música e de Hollywood, a falhar e a ver os seus sonhos esmagados. Existe uma energia especial por causa disso, e também por causa daqueles que chegam para trabalhar à margem, como o [realizador] Kenneth Anger. Essa tradição underdground sempre me inspirou”.

Morgan Delt absorve o ambiente em redor, mergulha nos discos do passado que tanto lhe dizem e fecha-se em casa a inventar mundos sonoros alternativos. Tudo montado, chama os amigos que compõem a banda de palco e parte para mostrar ao mundo o mundo que acabou de inventar. Esta sexta-feira, será tempo de o ver revelado em Portugal. Preparemo-nos convenientemente.

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