Mistérios da Natividade

Os presépios sempre serviram para doutrinar. Mas nem a gruta, o estábulo, o burro, a vaca ou o Menino aquecido pelo bafo dos animais fazem parte dos Evangelhos canónicos. Crentes ou não-crentes, devemos reconhecer a inquestionável verdade poética das narrativas evangélicas da Natividade.

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Estou debaixo de terra na Praça Central de Cracóvia. A observar esqueletos. De vampiros. Foram ali descobertos, creio que recentemente, os túmulos de seis mulheres: três delas deitadas em posição fetal, uma com as mãos atadas atrás das costas e as restantes duas decapitadas, com as cabeças separadas do tronco. Só assim se impediria, segundo a crença, que os vampiros ressuscitassem das tumbas e de novo viessem atormentar os vivos. A bizarra necrópole de Cracóvia data do século XI, mas estas práticas funerárias são bem mais antigas. Delas existem vestígios do ano 765, em Paderborn, na actual Alemanha. Quem tivesse a pele avermelhada, fosse canhoto, possuísse dentes salientes ou sobrancelhas espessas poderia ser suspeito de vampirismo — e ter um destino idêntico ao daquelas seis mulheres de Cracóvia. Uma morte súbita ou o suicídio eram igualmente suspeitos. Por precaução, decapitava-se o cadáver, apartando-se a cabeça do corpo e colocando-a sobre a tampa do caixão maldito.

Lá em cima, a poucos metros de onde me encontro, um veterano da resistência ao nazismo imolou-se pelo fogo em Março de 1980, protestando contra a depravação da juventude, a extinção das artes e ofícios tradicionais e o manto de silêncio que encobria o massacre de Katyn, quando no decurso da Segunda Guerra vários milhares de oficiais polacos foram abatidos a sangue-frio às ordens de Estaline e Lavrentiy Beria.

Nas arcadas do Mercado, o Café Noworolski, de veludos sumptuosos. Inaugurado em 1910, era frequentado pelas elites da cidade até os ocupantes nazis o terem requisitado para uso exclusivo de cidadãos alemães. Em 1949, foi nacionalizado pelo governo comunista, só sendo devolvido à família dos proprietários originais em 1992. O interior do Mercado é hoje inteiramente preenchido por bancas de artesanato e souvenirs turísticos. Entre eles, os presépios de Cracóvia. Feitos da prata dos chocolates, as suas cores brilhantes refulgem esplendorosas entre orvalhos de sangue e tantas memórias de morte.

Há-os noutros lugares da Polónia. Mas, por direito e tradição, os presépios pertencem a Cracóvia. Diz-se que lá chegaram no século XIII, trazidos de Itália pelos franciscanos. E é em Cracóvia, na Igreja de Santo André, que as Irmãs Clarissas guardam o mais antigo presépio da Polónia — ou até mesmo da Europa, garantem os especialistas —, composto por duas figuras talhadas em madeira de tília na segunda metade do século XIV, que parecem peças de xadrez e, provavelmente, faziam parte de uma composição maior: São José, pensativo e absorto, e Maria jubilosa, de braços abertos, pronta a acolher o Menino no seu regaço. Os olhos da Virgem são pintados e cobertos de vidro, técnica semelhante à que seria utilizada mais tarde pelos grandes artesãos napolitanos.

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Sob o impulso da Contra-Reforma, e da necessidade de catequização de um povo de poucas ou nenhumas letras, os presépios adquiriram uma importante função didáctica; para esta pedagogia da fé, as Clarissas tinham um presépio ainda hoje exibido na Igreja de Santo André, e em que as figuras eram mudadas durante o período do Natal para representar sucessivamente a Adoração do Menino pelos Pastores, a Matança dos Inocentes, a Circuncisão de Jesus, a Adoração pelos Reis Magos e a Apresentação no Templo. É também no ambiente pós-tridentino que se generalizam os presépios domésticos, expostos o ano inteiro, com figuras de cera ou madeira policromada resguardadas no interior de maquinetas envidraçadas.

Mas, a par disso, havia outro modelo de presépio que dizem ser exclusivo da Polónia. Nele, ao lado das figuras tradicionais existia um espaço para espectáculos de marionetas, tendo por temas a história do nascimento de Jesus ou, em versão satírica e profana, comédias de costumes, prática que as autoridades da Igreja acabariam obviamente por proibir. Contudo, os espectáculos eram extremamente populares — e rentáveis. Como num thriller de acção, a plateia assistia horrorizada à Matança dos Inocentes para logo depois aclamar, em ruidoso delírio, o castigo infligido a Herodes, o vilão da história: entrando em cena de rompante, a Morte cortava a cabeça ao rei da Judeia e o Diabo levava a sua alma para os confins das trevas. Moral da história: até os reis mais poderosos tinham de se submeter à implacável lei divina, assim se restaurando um elementar sentido de justiça por que o povo de Cracóvia tanto ansiava.

Os monges, como é óbvio, não estavam dispostos a abrir mão deste script arrebatador. Por isso, encontraram formas subtis de iludir a proibição eclesiástica, aproveitando o ritual das visitas domésticas de Natal e Ano Novo (koleda) para utilizar trabalhadores dos conventos ou estudantes de catequese como actores nas representações teatrais feitas porta a porta. Nestes percursos, transportavam consigo igrejas em miniatura com presépios, os chamados “betlemitas” (betlejemki). Encontram-se aí, nos finais do século XVIII, as raízes da arte dos presépios cracovianos, tal como hoje a conhecemos. Mas só no século seguinte ela ganhou forma e vigor devido à conjugação de diversos factores. Desde logo, Cracóvia possuía um abundante acervo de estórias e personagens lendárias, capazes de alimentar as peças representadas na Natividade, as quais eram escritas por literatos e membros da intelligenzia local, sedentos de afirmar a especificidade da cultura nacional polaca e, no seu seio, a supremacia da cultura local da cidade; a incorporação dessas figuras lendárias tinha a vantagem de tornar a dramaturgia da Noite Santa imediatamente reconhecível pelo auditório. Por outro lado, a circunstância de os presépios integrarem monumentos e edifícios emblemáticos, religiosos ou profanos (como o Castelo de Wawel, a Torre do Relógio, a Porta de São Floriano), tornava-os um poderoso elemento identitário de Cracóvia, não sendo por acaso que as representações da Natividade contaram sempre com o generoso patrocínio da burguesia local.

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Se a isto acrescentarmos o interesse romântico pelo folclore e pelas tradições populares compreenderemos em que medida o florescimento dos presépios de Cracóvia se inscreveu num movimento mais vasto, que a todos envolvia: artesãos, literatos, comerciantes burgueses e autoridades políticas. Tratava-se, além disso, de um negócio lucrativo e rentável, em que alguns artistas ganharam merecida fama e histórica reputação. Entre eles, Michal Ezenkier, um pedreiro e fabricante de azulejos que concebeu presépios e dirigiu um grupo que representou cenas da Natividade desde 1864 até à sua morte em combate, na Primeira Guerra Mundial. A ele se deve a concepção do modelo dos presépios de Cracóvia, sendo o seu filho Leon responsável pelo guarda-roupa das figuras. No Museu Etnográfico é possível admirar um exemplar da autoria de Ezenkier, com quatro figuras sob a forma de marionetas — Herodes e sua mulher, o Diabo e a Morte —, estando ausentes as personagens centrais da Natividade, e até mesmo a Sagrada Família… Não se trata, pois, em bom rigor, de uma alegoria do Natal, mas de um artefacto para um teatro de marionetas a ser apresentado ao público na época natalícia.

Em todo o caso, ainda hoje, do ponto de vista arquitectónico, os presépios cracovianos seguem o perfil traçado por Ezenkier: duas torres laterais em forma de pináculos góticos, semelhantes aos da Igreja de Santa Maria situada na Praça Central da cidade, acompanhadas por duas torres mais baixas, de inspiração barroca, e uma torre central mais elevada e dominante. A iluminação através de velas (que em Portugal vitimou, pelo menos, dois sumptuosos presépios barrocos de Lisboa) foi proibida por razões de segurança, passando a ser usadas lâmpadas eléctricas.

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Em finais do século XIX, o cânone estava estabelecido, sendo até fundada nessa altura uma guilda de artesãos de presépios, muitos dos quais pedreiros e carpinteiros dos arredores da cidade que, não tendo trabalho nos meses de Inverno, dedicavam o seu engenho e paciência à construção de representações da Natividade. Depois, iam mostrá-las de casa em casa, encenando teatralmente o nascimento do Menino, de uma forma não muito diversa daquela que os monges dos conventos tinham apresentado no século anterior. 

As duas guerras mundiais abalariam esta tradição artística, e o concurso anual de apresentação dos presépios de Cracóvia (szopka krakowska), iniciado em 1937 graças aos esforços do historiador de arte e etnógrafo Jerzy Dobryzcki, só seria retomado em 22 de Dezembro de 1945. Todos os anos, na primeira quinta-feira de Dezembro, os habitantes da cidade e os turistas podem contemplar o desfile. De invulgar estatura e dimensões pujantes, os presépios são transportados pelos artífices e seus familiares, que os depositam no meio da neve, junto à estátua do bardo nacional, o poeta romântico Adam Mickiewicz.

No concurso existem categorias de prémios destinados a crianças e jovens, na tentativa de preservar a continuidade desta arte. Há dinastias famosas de artesãos, como as famílias Malikowie, Gluchowie e Piacikowie, mas, segundo se diz, paira uma nova ameaça sobre os presépios de Cracóvia. Ao aproximarem-se da estátua do poeta muitos artistas são aliciados a vender logo ali as suas obras, em vez de aguardarem pelo dia em que serão expostas no Museu de História da Cidade. Intermediários vindos dos hotéis, delegados de agências de viagens, representantes de grandes empresas ou turistas endinheirados disputam avidamente os presépios de Cracóvia antes sequer de estes entrarem em competição.  

Nem sempre o tamanho conta. Espantei-me pelo facto de um presépio volumoso ser mais barato do que outro, bastante mais pequeno. Porém, um exame atento permitiu surpreender maior delicadeza das formas e mais fina perfeição do recorte dos papéis de prata e de folha de alumínio. As figuras centrais do presépio são, evidentemente, a Virgem, São José e o Menino. Por cima da Sagrada Família, anjos puríssimos fazem soar trombetas de alegria, enquanto pastores e ovelhas, e por vezes os Reis Magos, se aproximam em gloriosa adoração.

Com frequência, os presépios de Cracóvia apresentam figuras históricas: monarcas antigos, príncipes afortunados, heróis que alimentam o orgulho de uma nação martirizada ao longo de séculos. Copérnico aparece em alguns presépios, a par de personalidades lendárias como o corneteiro que, na torre da Igreja de Santa Maria, teve a garganta trespassada por uma flecha enquanto alertava a cidade para a invasão iminente dos tártaros. Ou Pan Twardowski, nobre e feiticeiro do século XVI que, como o Dr. Fausto, vendeu a alma ao Diabo a troco de poder mundano e grandes riquezas. Ou ainda o cavaleiro de vestes pseudo-orientais, o Lajkonik, que celebra a chacina dos tártaros e do seu Khan às mãos dos intrépidos barqueiros do Vístula, fasto ainda hoje recordado num desfile que todos os anos percorre Cracóvia no mês de Junho, durante a semana do Corpus Christi

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Como sucede nos presépios de todo o mundo, certas figuras envergam trajes tradicionais da região, ainda que sem a exuberância faustosa das suas congéneres de Nápoles. Em alguns deles, personalidades contemporâneas como Karol Wojtyla ou até mesmo Lech Walesa presenciam o nascimento do Menino. A exposição actualmente patente na antiga Fábrica de Oskar Schindler mostra presépios iconoclastas, em que Hitler e Estaline ocupam o lugar central e a Sagrada Família se afasta de burro, espavorida, a caminho de um Egipto imaginário. Tudo isto não deve causar estranheza se pensarmos que em Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, o vastíssimo presépio feito pelas beatas irmãs Dos Reis com figuras recortadas de jornais e revistas ostentava, além das de Rodolfo Valentino ou Charlie Chaplin, a imagem de Vladimir Illich Oulianov, a.k.a. Lenine — e sem que daí resultasse escândalo na retrógrada cidade de Ilhéus, Estado da Bahia.

Construídos em torno de uma armação de madeira, os presépios de Cracóvia têm uma característica singular: neles são representados, em patamares sobrepostos, as principais igrejas e outros monumentos da cidade, desde o românico à art nouveau. Alguns presépios são verdadeiros guias turísticos em três dimensões, como aquele que vi na penumbra da Basílica de São Francisco de Assis, à entrada dos claustros. Monumental, mais grandioso do que os que se podem contemplar no Museu Etnográfico, o presépio da Basílica de São Francisco apresenta as diversas igrejas de Cracóvia, devidamente assinaladas num mapa explicativo.

A reverberação da luz na prata multicolor dá-lhes uma aparência feérica, com laivos de sumptuosidade oriental, característica que é adensada pelo facto de muitos dos presépios de Cracóvia serem encimados por um zimbório em forma de cebola, à maneira bizantina ou ortodoxa. Por vezes, a Sagrada Família é ofuscada pela luminosidade resplandecente das cores vivíssimas e pela pujança dos ornamentos, raiando o kitsch. Quase nos esquecemos que Jesus nasceu numa gruta. 

A gruta de Belém

A gruta de Belém não é sequer mencionada nos Evangelhos. Aliás, quase tudo o que faz parte do imaginário e da cenografia da Natividade — a gruta e o estábulo, o burro e a vaca, o Menino aquecido pelo bafo dos animais — não consta dos Evangelhos canónicos. Em Lucas 2, 7 fala-se apenas de uma manjedoura, onde o Menino foi deitado, envolto em panos. Não se trata de um pormenor. Pelo contrário, a imagem de Jesus-criança enfaixado em panos, propagada pela tradição dos ícones, contém uma alusão antecipada à hora da sua morte. Prefiguração fulgurante, que introduz uma noção de circularidade do tempo na narrativa evangélica e nos leva a encarar o Calvário e tudo quanto lhe está associado — a Pietá, o Stabat mater dolorosa, etc. — a uma nova luz, impregnada de sombra: a da mãe que se reencontra com o filho morto, exactamente do mesmo modo como antes o tomara nos braços, recém-nascido.

Mais extraordinário ainda é pensarmos que, certamente de forma involuntária, esta ligação entre o nascimento e a morte de Cristo teve uma singular expressão artística: as primeiras grandes representações da Natividade, os presépios com figuras talhadas em retábulos feitos a partir do século XV no Norte dos Alpes, mostram claras semelhanças com os grandes Calvários do gótico tardio que foram realizados precisamente nessa época, e na mesma região. 

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Se a gruta não é referida nos Evangelhos, ela consta de uma antiquíssima tradição, como testemunharam o mártir Justino (Dial., 78) e Orígenes (Contra Cels., 1, 51) (cf. Salvador Muñoz Iglesias, Los Evangelios de la Infancia, vol. III, 1987, pp. 99ss). Também São Jerónimo escreveu, em 404, sobre o specus Salvatoris, a gruta do Salvador. Baseando-se no teólogo protestante Peter Stuhlmacher, professor em Tübingen, Joseph Ratzinger afirma, no seu livro Jesus de Nazaré. Prólogo. A Infância de Jesus (2012), que desde sempre, na região em redor de Belém, foram usadas grutas como estábulos. A isto poderíamos acrescentar que os Apócrifos contêm menções explícitas à gruta onde nasceu Jesus, como sucede, por exemplo, no Papiro Bodmer 37, 10 (“E ali encontrou uma gruta: levou-a para ela”), no Proto-Evangelho de Tiago 18, 1 (“Encontrou lá uma gruta: levou-a para lá”) ou no Evangelho do Pseudo-Mateus (“disse, depois, à bem-aventurada Maria que descesse do animal que entrasse numa gruta sob uma caverna na qual nunca entrava a luz, mas só as trevas, porque não podia receber a luz do dia”).

Em Roma, na actual Igreja de Santa Maria Maggiore, venerava-se como relíquia um pedaço da gruta original onde Jesus nasceu, a partir da qual foi construída, no século VII, a primeira réplica da gruta da Natividade executada no Ocidente. Foi também nessa igreja que se iniciou a tradição da missa da meia-noite. A manjedoura de Belém, diz a lenda, terá sido destruída no século II às ordens do imperador Adriano. Ainda assim, entre 432 e 440 o Papa Sixto III conseguiu trazer para Roma vários fragmentos do Santo Presépio, que mais tarde seriam dispersos por alguns templos da Cidade Eterna: Santa Maria Maggiore, a Igreja de Santa Maria no Trastevere e, naturalmente, a Basílica do Vaticano. Séculos depois, no ano de 1223, São Francisco faz erigir na floresta de Greccio aquele que é considerado o primeiro presépio do mundo, imortalizado por Giotto num fresco celebérrimo da Basílica de Assis. Mesmo isso, no entanto, suscita interrogações e mistérios, pois alguns especialistas entendem que o presépio, tal como o conhecemos, só tomaria forma muitos anos depois. Ou, ao invés, muitos anos antes, bastando recordar que a mais antiga conhecida imagem de Nossa Senhora com o Menino se encontra em Roma, nas Catacumbas de Santa Priscilla. Datando do século III, mostra a Virgem, Jesus e um profeta indicando a estrela, a estrela que, nas palavras de Pascoaes, é divino sorriso alumiante. Já falaremos dela, dentro de minutos.       

O nascimento de Jesus

A par da gruta de Belém, outros mistérios se adensam em torno do nascimento de Jesus, começando pela data em que ocorreu. Este é um ponto em que até Ratzinger concorda com os que, como E. P. Sanders (A Verdadeira História de Jesus, 2004, p. 27) ou Joachim Gnilka (Jesus de Nazaré, 1999, p. 77), dizem que houve um erro nos cálculos feitos no século VI pelo monge cítico Dionísio Exíguo († ca. 544) para a elaboração do seu calendário litúrgico e para a determinação do anno Domini. O nascimento de Cristo terá assim ocorrido alguns anos antes da data que, a partir daqueles cálculos, marca o início da contagem da nossa era. Vivemos, pois, por volta de 2019 ou de 2021 d.C. Por sua vez, Jesus terá nascido no ano 4, 5, 6 ou até 7 a.C., facto que pode apoiar a tese da inverosimilhança de diversas passagens do Novo Testamento mas que, queiramo-lo ou não, tem um desconcertante sentido profético. Antes de nascer, Cristo já o era. Talvez possamos enquadrar essa realidade nas palavras de São João Baptista, recolhidas no Evangelho de João: “Aquele que vem depois de mim é mais importante do que eu, porque já existia antes de mim” (Jo, 1, 30).  

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Muitos defendem que, ao invés de buscar afanosamente uma sustentação histórico-factual para todas as referências evangélicas, devemos assumir que as tentativas de concordismo bíblico, que subsistem entre diversos exegetas católicos e protestantes, são destituídas de fundamento em face da flagrante discrepância entre os relatos de Mateus e Lucas (pese as similitudes detectadas por vários autores, como René Laurentin, Les Évangiles de l’Enfance du Christ, 1982, pp. 361ss). Aquela discrepância, note-se, não é factual, uma vez que os evangelistas nunca tiveram o propósito de elaborar uma biografia histórica de Jesus mas antes uma narrativa construída com um objectivo estritamente teológico, não distante de um género literário hebraico antigo, o “midraxe hagádico”, em que uma dada interpretação das Escrituras é apresentada através de relatos e narrações (cf. Joaquim Carreira das Neves, Jesus Cristo. História e Mistério, 2000, pp. 55ss). Em face disto, tanto se afiguram vãs as “denúncias” de um E. P. Sanders sobre as contradições entre Mateus e Lucas como se revelam as dificuldades de um Joseph Ratzinger para encontrar uma explicação histórica para tudo quanto os dois evangelistas afirmam. Por exemplo, Bento XVI apoia-se em Flávio Josefo († ca. 100) para fundamentar historicamente a ocorrência de um recenseamento para fins tributários na época de Augusto, mas não menciona que o autor de Antiguidades Judaicas em lugar algum se refere à matança de crianças no reinado Herodes, facto que, a ter ocorrido, mereceria certamente registo nos anais da época. Do mesmo passo, Ratzinger sustenta que Maria e José terão ido a Belém justamente por causa daquele censo fiscal, pois, apesar de viverem em Nazaré, é legítimo “supor que José, da casa de David, possuísse um terreno em Belém, pelo que tinha de ir lá para a cobrança dos impostos” (op. cit., pág. 57).

Na ausência de bases históricas para uma tal suposição, melhor será abrirmo-nos à intenção profética das narrativas evangélicas, nos termos da qual Jesus tem de nascer em Belém por ser essa a cidade de David. Só dessa forma se cumpre e realiza o destino profetizado em Miqueias 5, 1: “Quanto a ti, Belém, no clã de Efrata, embora sejas tão pequena entre as terras de Judá, de ti farei seguir aquele que vai ser o guia de Israel.” Muito do que encontramos no Evangelho de Mateus surge ordenado — e só é explicável — justamente enquanto cumprimento de um desígnio messiânico ou profético, incluindo um ponto que, além do nascimento em Belém, é incontroverso para todos os evangelistas: a concepção virginal de Jesus. A virgindade de Maria é prenunciada em Isaías 7, 14: “Pois bem, é o próprio Senhor que vos vai dar um sinal: a jovem mulher está grávida e vai dar à luz um filho e pôr-lhe-á o nome de Emanuel” (no texto hebraico; sendo mais expressiva a antiga versão grega dos Setenta, a Septuaginta: “A virgem ficará grávida e dará à luz um filho que se há-de chamar Emanuel”). Por outro lado, quando o anjo Gabriel saúda Maria (“O Senhor está contigo”, Lc 1, 28), actualiza a profecia constante da Escritura hebraica, mais precisamente de Sofonias 3, 17: “O Senhor, teu Deus, está no meio de ti.” A fuga para o Egipto, por seu turno, realiza a profecia de Oseias 11, 1: “Chamei do Egipto o meu Filho.” O massacre das criancinhas visa cumprir o que escreveu o profeta Jeremias 31, 15. E a presença em Nazaré, e não na Judeia, tem um propósito evidenciado em Mateus 2, 23: “Ali fixou residência numa terra chamada Nazaré. Foi assim que se cumpriu aquele dito dos profetas: ‘Ele há-de chamar-se Nazareno’.”

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Sonhos e presságios

É também a esta luz, à luz do cumprimento de um desígnio profético, que se compreende que os chamados “evangelhos da infância” sejam marcados por analepses teológicas, digamos assim, que fazem com que a narrativa seja constantemente atravessada por sonhos e presságios, sinais, profecias. É o Natal com seus mistérios. Um anjo aparece em sonhos a José, tranquilizando-o sobre a virgindade de Maria (Mt 1, 20); outro lhe surgirá, também em sonhos, ordenando-lhe que fuja para o Egipto (Mt 2, 13) e, mais tarde, que de lá regresse à terra de Israel (Mt 2, 19). É também através de um sonho que Deus — desta feita, dispensando a intermediação de anjos — avisa os sábios do Oriente para não voltarem a encontrar-se com Herodes (Mt 2, 12).

No relato lucano, as angelofanias não emergem numa atmosfera onírica, mas sob a forma de aparições. É desse modo que um anjo anunciou a Zacarias o nascimento de João Baptista (Lc 1, 11) ou que outro anjo, Gabriel, anunciou a Maria o nascimento de Jesus (Lc 1, 26). “Servirei o Senhor como ele quiser. Seja como tu dizes”, respondeu-lhe a Virgem, o que levou alguns padres da Igreja a concluírem que Maria terá concebido através do ouvido, por uma obediente audição da Palavra de Deus, derivando daí, segundo se diz, a expressão popular “emprenhar pelos ouvidos”.

A densidade, a um tempo poética e teológica, da aparição angelical é potenciada por uma breve mas lindíssima frase, também ela misteriosa, que remata o diálogo entre Maria e o anjo Gabriel. Após a Virgem lhe ter dito “Seja como tu dizes”, o Evangelho de Lucas acrescenta: “E o anjo retirou-se” (Lc 1, 38). Como salienta Joseph Ratzinger, esse dito tão simples, aparentemente destituído de significado — “E o anjo retirou-se” —, surpreende, ao colocar Maria num momento de solidão, de confronto consigo mesma e com a tarefa que lhe fora atribuída. A sós, com Deus. O mistério da Natividade é também o mistério da maternidade e da solidão que sempre a rodeia, em todos os tempos e lugares, hoje como há dois mil anos.

A reserva e a discrição de Maria têm algo de enigmático, emergindo em tantos momentos do texto de Lucas que muitos asseveram que uma das fontes do evangelista terá sido a própria Virgem, descrevendo factos que só poderiam ser revelados após a sua morte. Ao presenciar a correria dos pastores rumo a Belém, para divulgar a Boa Nova, “Maria recordava todas estas coisas e meditava nelas atentamente” (Lc 2, 19). A narrativa lucana da Anunciação só é possível por acesso directo a Maria ou, em alternativa, sendo fruto da imaginação do evangelista, que obviamente não presenciou, por exemplo, o diálogo da Virgem com o anjo Gabriel. Mais adiante, quando Jesus abandona por instantes a família, aos 12 anos de idade, e responde aos pais, inquietos pelo seu desaparecimento, “Porque é que me procuravam? Não sabiam que eu tinha de estar em casa de meu Pai?”, Lucas acrescenta: “Eles não compreenderam o que lhes disse” (Lc 2, 50). A família regressa a Nazaré e Jesus continuou a ser obediente. “Sua mãe guardava todas estas coisas no coração” (Lc 2, 51). Este é o trecho decisivo, aquele em que se revela de forma mais patente a solitária reserva da Virgem Maria. E também, passado um momento de perturbação inicial, a suave placidez com que presenciou e se fez cúmplice do Natal e seus mistérios.

A serenidade da Virgem, sintomaticamente, contrasta com a azáfama dos pastores que correram apressados a Belém, com as inquietações de Herodes e do Sinédrio ou com o escândalo suscitado em Jerusalém pelo nascimento do Menino. À semelhança do que ocorreu com a imagem do Menino envolto em panos (Lc 2, 7), o nascimento e a morte de Cristo voltam a encontrar-se. A perturbação sentida em Jerusalém por alturas do Natal é idêntica à que ocorrerá aquando da entrada triunfal de Cristo na cidade santa. De acordo com Mateus, “quando Herodes teve conhecimento disto, ficou muito preocupado, e como ele todos os moradores de Jerusalém” (Mt 2, 3); 30 anos depois, “quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou em alvoroço” (Mt 21, 10). De igual modo, o Sinédrio intervém a pedido de Herodes, aquando do nascimento de Jesus (Mt 2, 4-5), e depois para o seu julgamento (Mt 26, 57). Aliás, os Reis Magos buscam o “rei dos Judeus” (e não, como deveriam, o “rei de Israel”), sendo aquele o título pelo qual Jesus será, muito mais tarde, julgado e condenado à morte (Mt, 27, 11). Nascimento e morte, os dois pólos da existência terrena de Jesus, em torno dos quais se constrói a narrativa evangélica, segundo o polarismo, técnica de expressão simbólica muito comum na semântica hebraica (cf. Gianfranco Ravasi, Videro il Bambino e sua Madre. Meditazioni sui vangeli dell’infanzia, 2000, p. 6). É extraordinário pensar, como expressão acidental dessa polaridade, que a data do nascimento de Cristo foi fixada em 25 de Dezembro pelo Papa Júlio I tendo em conta precisamente a sua estreita ligação ao Calvário, a par de outros factores, como a celebração romana do Dies natalis solis invictis, o solstício de Inverno. 

O Menino Jesus

Jesus Cristo é o Menino, o Menino Jesus, e assim será conhecido pela tradição da fé, feita história de amor humano. No Auto Pastoril Português, Gil Vicente fala, enternecido, do “cachopinho tam fermoso e sesudinho / filho de Nossa Senhora”. A imagética da Natividade e todo o ambiente que a envolve animam sentimentos vários, desde o embevecimento pelos recém-nascidos à exaltação da sua inocência. De permeio, a composição dos presépios é um regresso ao tempo da infância ou um Ersatz da maternidade. Não por acaso, desde a Idade Média existiu nos conventos femininos germânicos a tradição do Kindlwiegen (“Embalar o Menino”), em que a figura de Jesus-criança surge colocada num berço móvel, com o qual se podia brincar. Neste contexto, o Menino adquire absoluta centralidade, a um ponto tal que passa a ser alvo de devoção específica e de representações artísticas que o tomam por objecto exclusivo. Aparece então sob a forma de uma criança igual a todas as outras, com absoluta candura, na quietude do sono. Na Igreja Paroquial da Carvoeira, em Torres Vedras, Jesus Menino dorme tranquilamente, de faces rosadas, na completa nudez com que nasceu, numa delicada torção, com a cabecinha postada numa almofada de seda bordada a missangas, fazendo cócegas no umbigo. Noutros lugares, como na Igreja das Chagas e no Convento dos Cardaes, em Lisboa, ou na Igreja Paroquial de São Pedro, em Peniche, surge deitado num berço, de olhos abertos ao espanto do mundo. Quem assim se mostra não é o Redentor ou o Messias, mas tão-só uma criança recém-nascida. Numa escultura de vulto pleno e reduzidas dimensões, feita no século XVIII-XIX por um autor desconhecido, e hoje exibida no Museu do Patriarcado de Lisboa, o Menino tem um vasto enxoval de 25 vestidos, em cetim e prata, que se mudavam consoante o gosto, num dispositivo parecido ao do Menino Jesus de Praga, que desde o século XVI vem acumulando um abundantíssimo enxoval, com roupas de toda a parte.

Esta dimensão lúdica da Natividade é tão importante como a religiosa, o que obrigou frequentemente à intervenção correctiva das autoridades eclesiásticas. No inventário de um castelo italiano, elaborado em 1567, consta que a duquesa de Amalfi tinha dois baús com 116 figuras de presépio, certamente para seu deleite e entretenimento. Pela mesma altura, no Sul da Alemanha, a arquiduquesa Maria de Wittelsbach enriquecia o seu presépio privado com figuras de madeira encomendadas a artesãos de Munique. E, no século XVIII, as famílias da aristocracia napolitana competiam entre si pela posse do presépio mais faustoso, mais ricamente adornado por figuras de barro ataviadas com delicados finimenti, numa opulência visual que fascinaria Goethe.

Na Bíblia, porém, a designação de “menino” tem um objectivo preciso e nada lúdico ou aparatoso: destina-se a evitar que Jesus seja apresentado como filho de José. O anjo de Deus diz a José “levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge com eles para o Egipto” (Mt 2, 13) e, mais tarde, “levanta-te, toma o menino e sua mãe e volta para a terra de Israel” (Mt 2, 20-21), quando a fórmula correcta teria sido “toma o teu filho e sua mãe…”. No Alcorão, aliás, Cristo é reiteradamente descrito tão-só como “Jesus, filho de Maria”, sem menção do nome do pai (2.ª surata, versículos 87 e 253; 3.ª surata, versículo 45). No Evangelho de Mateus, a genealogia de Cristo é apresentada através do encadeamento das gerações por via masculina (“Abraão gerou Isaac…”), mas, singularmente, chegando a Jesus, deixa de se falar em geração: “Jacob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo” (Mt 1, 16). Só assim se torna possível preservar a concepção virginal de Maria e, em simultâneo, integrar Jesus na linhagem da Casa de David (cf. Jean Daniélou, Les Évangiles de l’Enfance, 1967, p. 45; cf. ainda John P. Meier, A Marginal Jew. Rethinking the historical Jesus, vol. I, 1991). Significativamente, não se diz que José gerou Jesus, pois Cristo é “obra do Espírito Santo” (Mt 1, 20). Quando os Reis Magos se abeiram da gruta de Belém, José não se encontra lá, estranhamente (Mt 2, 11).

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Ratzinger reconhece que nunca conseguiu encontrar explicação para tal ausência. Em alguns Apócrifos, todavia, José está lá, junto a Maria, e com ela recebe dos Magos oferendas preciosas (cf., por ex., o Evangelho do Pseudo-Mateus 16, 2). Mas é incontroverso que, nas narrativas dos Evangelhos canónicos, José não se encontra em cena quando os sábios do Oriente fazem a proskynesis perante o Menino real, ou seja, quando se prostram diante d’Ele. Aliás, a presença de José nas representações do presépio só se torna comum no século VI, altura em que a Natividade e a Adoração dos Magos já eram visíveis em diversas obras de arte, como o cofre de Werden, na Vestefália, os mosaicos de São Apolinário ou as âmbulas metálicas de Monza, em Ravena. Em Natividade, um pastel sobre papel feito por Paula Rego em 2002, exposto na Capela do Palácio de Belém, em Lisboa, Maria dá à luz amparada apenas por um anjo de rosto compenetrado e grave. Do marido, nem sombra. Ter-se-á José ausentado no momento crucial da Noite Santa? Trata-se de um mistério tão singular quanto é sabido que a realeza de Jesus — se quisermos, a realeza terrena de Jesus — provinha de José, da Casa de David, e não de Maria, simplesmente Maria, de família pobre de Nazaré. Em todo o caso, é José que dá ao recém-nascido o nome de Jesus (“a quem José pôs o nome de Jesus”: Mt 1, 25) e é a paternidade de José que permite inscrever Jesus na genealogia de David, do mesmo modo que foi a ascendência de David que, no relato lucano, levou José e Maria a Belém, onde foram inscrever-se no recenseamento realizado quando Quirino governava a Síria. “Todos iam inscrever-se, cada um na sua cidade. Por isso, José partiu de Nazaré, na província da Galileia, e foi para Belém, na província da Judeia, onde tinha nascido o rei David. Como José era descendente de David, foi lá inscrever-se com Maria, sua mulher, que estava grávida” (Lc 2, 3-5). Por conseguinte, José é pai de Jesus não apenas em face da lei mas também porque só desse modo se realiza a profecia que fez nascer o Menino em Belém. Todavia, e como salienta Ratzinger, a origem de Jesus, no que respeita à paternidade de José, “permanece um mistério”, a juntar a tantos outros que a Natividade encerra. “Supunha-se que era filho de José”, diz-nos Lucas 3, 23.

Bichos

Falemos dos animais. Nas mais antigas representações da Natividade, três sarcófagos do século IV que hoje se encontram nos Museus do Vaticano, já surgem o burro e a vaca junto ao berço do Menino. Não são referidos nos Evangelhos canónicos, mas há quem descortine a sua presença em trechos veterotestamentários cuja concatenação poderia explicar que junto ao Menino estivessem um burro e uma vaca, testemunhos de obediência e fidelidade, signos de mansidão. Em Isaías 1, 3: “O boi reconhece o seu proprietário, e o burro o estábulo do seu dono; mas Israel, o meu povo, nada conhece e nada compreende.” Há quem realce igualmente a versão grega de Habacuc 3, 2: “No meio de dois seres vivos serás conhecido (…); quando vier o tempo, tu aparecerás.” Simplesmente, a esta menção liga-se os dois querubins que, segundo o Êxodo 25, 18-20, estavam colocados sobre a cobertura da Arca da Aliança, indicando e simultaneamente escondendo a misteriosa presença de Deus. Mesmo admitindo a existência de um paralelismo entre a manjedoura de Belém e a Arca da Aliança, permanece um mistério a correlação entre os querubins do Êxodo e a alusão a um boi e a um jumento feita em Isaías 1, 3. Essa correlação não tem, evidentemente, a pretensão de desvendar aqui, num trecho relacionado com animais domésticos, o cumprimento de um grandioso desígnio profético, como bem observam comentadores rigorosos (cf. Salvador Muñoz Iglesias, op. cit., pp. 104ss). E por isso talvez se afigure mais avisado, até numa perspectiva de reconhecimento de espaço à tradição da Igreja, situar o surgimento do burro e da vaca numa fase posterior da História, num tempo de reconstrução imaginária da Natividade, valorizando o Natal como uma narrativa aberta tanto ao labor dos exegetas quanto à fé dos crentes.

A presença dos animais — não apenas do burro e da vaca, mas de todos quantos depois entraram nos presépios, desde as ovelhas dos pastores aos elefantes e girafas, macacos e leopardos que acompanhavam o séquito dos Reis Magos — aprofunda o deslumbramento encantado e o afecto generoso que o presépio sempre desperta. “O Evangelho é simplesmente um catálogo de coisas inesperadas. Não se espera que um boi e um burro adorem a manjedoura. Os animais estão sempre a fazer as coisas mais incríveis nas vidas dos santos. Faz tudo parte da poesia, o lado Alice no País das Maravilhas da religião”, diz Lady Marchmain a Charles Ryder em Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh. Como é possível explicar, senão desta forma, que Jesus faça a sua entrada triunfal em Jerusalém montado numa burra acompanhada de um jumentinho?

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A estrela

Agora, a estrela. É ela que, dirigindo-se para ocidente, guia os Reis Magos até à gruta de Belém. Quando a avistaram, os sábios “sentiram uma alegria enorme” (Mt 2, 9-10). Outro prodígio da Natividade. “Era real e não imaginada”, escreve Sophia, num poema que lhe dedicou. Contudo, muitos duvidam da sua existência, dizendo mesmo que era impossível uma estrela deslocar-se da maneira descrita nos Evangelhos. Johannes Kepler, no que parece ser seguido por alguns astrónomos actuais, salientou a existência de uma conjunção dos planetas Júpiter, Saturno e Marte, acompanhada de uma supernova, por altura dos anos mais prováveis do nascimento de Jesus. Afirma-se também que tábuas cronológicas chinesas assinalam o surgimento de uma estrela por volta do ano 4 a.C.

No seu monumental Guide to the Bible, o prolífico escritor e divulgador científico Isaac Asimov duvida do aparecimento de uma supernova, mas reconhece a singular aproximação entre Júpiter e Saturno ocorrida, segundo ele, em 7 a.C. A hipótese que tem por mais plausível é, todavia, a da passagem do cometa Halley pelo sistema solar interno, que se verificou em 11 a.C. Não existem, em qualquer caso, provas concludentes sobre a existência da estrela da Natividade (cf. Salvador Muñoz Iglesias, op. cit,, vol. IV, 1990, pp. 226ss). Podemos considerá-la um dispositivo literário, um estratagema metafórico para assinalar o domínio cósmico de Deus e o universalismo da sua mensagem; ou, de novo, encará-la como a concretização de uma referência do Antigo Testamento, aquela que é feita à estrela de Balaão no livro dos Números 24, 17: “Uma estrela de Jacob vai dominar, vai erguer-se um ceptro de Israel.” Ou podemos, pura e simplesmente, eliminar a estrela dos céus da Judeia, considerando “patéticos” os esforços para demonstrar e documentar a sua existência (cf. Gianfranco Ravasi, op. cit., p. 8) ou mesmo afirmando acidamente, como José Saramago: “Brilham lumes no céu? Sempre brilharam.” Mas, se assim fizermos, com isso se perderá o mais cintilante dos mistérios da Natividade, a “ditosa strella, que os três Reys guiaste”, como lhe chamou o poeta quinhentista Diogo Bernandes.

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Entrai, pastores

As primeiras testemunhas do nascimento de Jesus são pastores (e os seus rebanhos, claro). Não é difícil discernir a razão e o sentido da sua presença ali, no meio dos campos. A mensagem evangélica, neste passo, é cristalina: os pastores são os humildes, os pobres, os eleitos para a mesa do Senhor, alegoricamente apresentada sob a forma de manjedoura. Os pastores foram também os que de noite, naquela noite, se encontravam de vigia, atentos aos sinais dos céus, o que inspirará as veladas e as orações nocturnas da tradição monacal. Não por acaso, uma das figuras características nos presépios napolitanos — também presente em alguns exemplares do barroco português — é o homem que dorme, o “dorminhoco” que não está atento aos sinais de Deus nem se encontra pronto a acolher a mensagem da Natividade e seus mistérios. O sono corresponde, neste contexto, a uma alusão metafórica à descrença e ao paganismo. Por outro lado, Cristo, nascendo entre pastores, será, como David, o grande Pastor dos homens. “Não tenham medo!”, diz-lhes o anjo num cântico (Lc 2, 9), exortação retomada e mundialmente celebrizada por João Paulo II, que antes de ser Papa fora arcebispo de Cracóvia, a cidade dos presépios resplandecentes.      

Os Reis Magos

Dos Reis Magos muito se poderia dizer, começando pelo facto de, segundo diversos exegetas, a sua presença não ser essencial à apreensão do Natal e seus mistérios (cf., por ex., Jean Daniélou, op. cit., p. 105). Contudo, o facto é que o Evangelho de Mateus refere os “sábios de Oriente” que vêm prostrar-se aos pés de uma família humílima, a que recusaram hospedagem no caminho para Belém, um dado muito expressivo e paradoxal, como sublinha o Evangelho de São João: “Veio para o seu próprio povo, que não o quis receber” (Jo 1, 11). “Nom tendes cama bom jesus não / non tendes cama senão no chão (…) / non tendes cama senão de feno”, dizia um poeta português anónimo do século XVI. De facto, a Sagrada Família teve de buscar refúgio num estábulo. A palavra “presépio” deriva do latim praesepe, cujo significado básico é “estábulo” ou “curral”, sendo composta pelo prefixo prae (“diante”) e pelo substantivo saepes (equivalente a “lugar fechado”, o que produziu a palavra “sebe”). O presépio só existe quando terceiros se encontram diante da cena da Natividade, que perante eles se apresenta — ou representa — teatral e cenicamente. Os Reis Magos não serão imprescindíveis para compreender a Natividade mas, juntamente com os pastores, afiguram-se essenciais para que exista “presépio”, tal como este é designado em castelhano, português ou italiano (em alemão, a palavra “Krippe” denominava apenas a manjedoura, à semelhança de “crèche”, em francês; a língua inglesa, curiosamente, não tem uma expressão para designar a representação figurativa da Natividade).

A comitiva dos Reis Magos foi variando com o tempo. Chegaram a ser 12. Um decreto papal do século V, apoiando-se numa homilia de Leão Magno, fixou definitivamente em três o número dos sábios do Oriente. E se, de acordo com a interpretação agostiniana, a manjedoura equivale metaforicamente à mesa de Deus, para a qual todos são convidados, a tradição tomou os magos como reis de todos continentes então conhecidos — África, Ásia, Europa. Entre eles, encontra-se um rei negro, o que para diversos intérpretes, como Joseph Ratzinger, é sinal demonstrativo de que não há distinção de raça nem de proveniência no reino de Jesus Cristo. Na paleta de Vasco Fernandes e Francisco Henriques, a Adoração dos Reis Magos (1501-1506) apresenta mesmo, em vez de um negro, um índio de terras de Vera Cruz, da etnia tupinambá. Num registo menos surpreendente, até vulgar em representações barrocas, o Presépio da Madre de Deus, em Lisboa, atribuído ao escultor António Ferreira, exibe quatro cavaleiros árabes, na peugada dos sábios do Oriente. Também já se viu nos Magos a enunciação das idades da vida: a juventude (Baltasar), a idade adulta (Gaspar) e a velhice (Melchior). No entanto, a ideia de que os Reis Magos teriam vindo de todos os continentes não se coaduna com aqueloutra, igualmente sustentada por Ratzinger, segundo a qual os magos (mágoi) pertenceriam à casta sacerdotal persa ou, mais precisamente, a um pequeno grupo de astrónomos que ainda existiria na Babilónia e que teriam sido capazes de alcançar o significado da conjunção astral dos planetas Júpiter e Saturno no signo zodiacal dos Peixes, verificada nos anos 7-6 a.C., ou seja, naquela que é apontada como a verdadeira data do nascimento de Jesus.

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A atribuição aos magos do título régio não coloca particulares problemas se, uma vez mais, for lida em articulação com elementos extraídos do Antigo Testamento, nomeadamente o Salmo 72 (“Os reis de Társis e das ilhas oferecerão tributos, / os reis de Sabá e de Seba mandarão presentes! / Todos os reis se curvarão diante dele; / todas as nações o servirão!”) e a passagem de Isaías 60 sobre a nova Jerusalém: “E os reis serão atraídos para o esplendor da tua aurora.” No entanto, ao resolver-se deste modo a questão da realeza dos magos, outro problema se suscita. O Salmo 72, como se viu, alude aos reis de Társis, nome pelo qual os gregos descreviam a primeira civilização do Ocidente (Tártassos), a que os romanos chamavam Tartessus, localizada na actual Espanha, num triângulo formado na costa sudoeste da Península Ibérica e que hoje envolve as províncias de Huelva, Sevilha e Cádiz. Há quem assevere que este território civilizacional abrangia também o Algarve, as margens do Guadiana e até do Tejo. Poderemos supor que um dos Reis Magos era algarvio? Não. Os sábios que adoraram Jesus vieram de Oriente; a alusão à mais ocidental das civilizações então conhecida destina-se tão-só a sublinhar a vastidão do domínio do Messias ou, noutra perspectiva, o universalismo da sua mensagem, patente no cântico jubiloso de Simeão: “Já vi com os meus olhos o Salvador que enviaste para todos os povos” (Lc 2, 30-31).

Ao menino de Belém, os Magos oferecem ouro, incenso e mirra, bens decerto supérfluos para o agregado familiar de um carpinteiro da Galileia, mas cujo alcance se descortina, uma vez mais, no Velho Testamento, nos já citados Salmo 72, 10-12 e Isaías 60, 5. Segundo a tradição da Igreja, o ouro apontaria para a realeza de Jesus, o incenso para o Filho de Deus e a mirra para a Paixão e seus mistérios. Na verdade, irrompe aqui, novamente, a polaridade entre o nascimento e a morte de Cristo, pois o Evangelho de João refere que, para ungir o corpo de Jesus, Nicodemos trouxe, entre outras coisas, como perfumes e aloés, uma grande quantidade de mirra (Jo 19, 39).      

Vindos de distintas origens, os Reis Magos chegaram a Jerusalém 13 dias depois do nascimento de Jesus. Feita sem paragens ou interrupções, numa caminhada em que todos, incluindo os animais, nada comeram ou beberam, a viagem, aos olhos dos Magos, pareceu ter sido realizada num só dia. No Livro dos Reis Magos, escrito na segunda metade do século XIV pelo monge carmelita João de Hildesheim, diz-se que “muitos se espantam pela rapidez da viagem”. Logo de seguida, o frade acrescenta que, se para tudo existisse uma explicação racional, a fé seria desnecessária. Na verdade, muito do que se lê nos Evangelhos não é compreensível à luz da razão. Por exemplo, não se percebe o motivo pelo qual Herodes mandou matar todas as crianças até à idade de dois anos: teria demorado tanto tempo a aperceber-se de que os Reis Magos o enganaram?

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O tempo da Natividade não é, decididamente, o tempo das cronologias — como o demonstra, desde logo, a inaudita velocidade com que os Reis Magos e os seus exércitos chegaram à gruta de Belém. A propósito de outro trecho dos Evangelhos, há quem distinga o tempo cronológico do tempo da revelação. Diz-se que há o tempo da acção, por um lado, e o tempo das personagens, por outro; e que, sendo a narrativa uma operação sobre o tempo, a narrativa vocacionada para as personagens é diferente da que tem por objecto a acção (cf. José Tolentino Mendonça, A Construção de Jesus. A Surpresa de Um Retrato, 2004, pp. 164ss). É também isso que ocorre, e porventura com ainda maior intensidade, nos “evangelhos da infância”, não sendo ao acaso que, na peça de Shakespeare, o príncipe Hamlet proclama que “o Natal é tempo santo e cheio de graça”. Na verdade, o Natal desperta um tempo suspenso, adormecido, em que a febril actividade humana é alvo de súbita paragem e momentânea pausa. Com o frio lá fora, ao lume da lareira antiga, os homens dão tréguas a si próprios e ao vazio trepidante em que vivem. Durante uns dias, ou um par de horas, o ritmo abranda, no convívio festivo com os entes mais queridos ou próximos. A alegria transbordante aparece sempre, seja de forma real ou simulada, serena ou ruidosa. Suspendem-se os conflitos e as inimizades, pensa-se nos que estão distantes e sós, tudo nos serve de pretexto para o doloroso recordatório de natais pretéritos, os da meninice — e para a saudade dos que já partiram. A “Trégua de Natal” de 1914, quando espontaneamente, dos dois lados das trincheiras, os soldados alemães e britânicos decidiram largar as armas e, em vez de tiros, trocar entre si saudações festivas, cânticos natalícios — e até presentes! — comprova o poder apelativo da Noite Santa, a sua enorme força simbólica. A Weihnachtsfrieden ou Christmas truce da Primeira Guerra é tão intrigante como a caminhada dos Reis Magos, só sendo explicável no quadro do tempo suspenso que caracteriza a Natividade e seus mistérios. 

A nuvem

Não há mistérios sem nuvens. E a nuvem, espessa e poderosa, lá aparece nos Evangelhos. Na Anunciação, Gabriel diz a Maria: “O Espírito Santo descerá sobre ti e o poder do Deus altíssimo te cobrirá com uma nuvem” (Lc 1, 35). A nuvem sagrada — a shekinà — assinala a presença de Deus, ao mesmo tempo que o esconde. Ela surge, luminosa mas ameaçadora, em diversas passagens do Livro do Êxodo. Quando o povo de Israel marchou para o deserto, conduzido por Moisés, foi orientado, de dia, por uma coluna de nuvens e, de noite, por uma coluna de fogo (Ex 13, 21-22); ao chegarem ao Sinai, uma “espessa nuvem” cobriu o monte (Ex 19, 16); então, Deus ordenou a Moisés que subisse o monte, que permaneceu coberto pela nuvem durante seis dias; ao sétimo dia, do interior da nuvem, o Senhor chamou Moisés, que entrou na nuvem, subiu ao monte e aí esteve 40 dias e 40 noites (Ex 24, 15-18). No Novo Testamento, a nuvem reaparecerá num dos momentos cruciais e mais carregados de mistério, a Transfiguração. Quando Jesus leva Pedro, João e Tiago a um monte, para orarem, uma nuvem passa por cima deles e os discípulos ficaram cheios de medo. “Da nuvem saiu então uma voz, que dizia: ‘Este é o meu Filho querido. Escutem o que ele diz’”, um relato presente nos três sinópticos (Mt 17, 5; Mc 9, 7; Lc 9, 35).   

Escutemos, pois, o que nos dizem os filhos de Deus — Cristo e todos os homens. Crentes ou não-crentes, devemos, acima de tudo, reconhecer a inquestionável verdade poética das narrativas evangélicas da Natividade (cf. Frederico Lourenço, O Livro Aberto: Leituras da Bíblia, 2015, p. 40). Eis uma mensagem que também interpela a Igreja, devendo lembrar-se que a última obra a ser colocada no Índex, antes de este ser abolido, foi o livro Vie de Jésus (1959), de um notável biblista francês, Jean Steinman. A sua leitura foi proibida devido ao capítulo dedicado aos “evangelhos da infância”, o que prova que estes são uma questão muito mais séria do que uma mera fábula com burros e vacas ou uma historieta fantasiosa que ciclicamente, todos os anos, emerge e sinaliza a “quadra natalícia”, à semelhança do frenesi das compras ou das mortes nas estradas. 

Afinal, feliz

Há poucas semanas, em finais de Novembro, uma mãe em desespero deixou o seu filho recém-nascido na manjedoura de um presépio montado numa igreja de Queens, em Nova Iorque. A polícia conseguiu localizar a mulher, que disse estar convicta de que na igreja cuidariam melhor do seu bebé do que ela. A criança, um rapaz, estava embrulhada numa toalha, trazendo ainda consigo resquícios do cordão umbilical. Segundo os jornais, a mulher não será processada criminalmente, uma vez que a legislação vigente no estado de Nova Iorque permite que os pais de crianças com menos de 30 dias as deixem ao cuidado de outrem ou as abandonem numa suitable location, um “lugar apropriado”. Neste caso, o lugar tido como “apropriado” por uma mãe em desespero foi uma igreja do bairro de Queens. Mais precisamente, a Igreja do Menino Jesus.

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