Michel Tournier (1924-2016), um romancista fascinado pelo mito

O escritor francês, para quem o romance devia ser a elevação de uma história à condição de mito, morreu na segunda-feira aos 91 anos.

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Michel Tournier fotografado em 2005 no jardim de sua casa em Choisel AFP / CATHERINE GUGELMANN

Michel Tournier teve uma vida longa, morreu com 91 anos na segunda-feira. Pela sua obra foi muitas vezes considerado – em círculos localizados e zelosos de valores tradicionais do romance – um dos maiores romancistas franceses da segunda metade do século XX e merecedor de ganhar o incerto estatuto de nobelizável. Desde meados dos anos 1990 que quase deixou de publicar.

O seu primeiro romance foi aquele que mais glória literária lhe trouxe. Publicou-o em 1967, quando já tinha 42 anos, e chama-se Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico (foi também o primeiro a ser traduzido em português, por Fernanda Botelho, na Bertrand, e mais tarde na Relógio d'Água; outras traduções dos romances de Tournier foram publicadas pela Dom Quixote). É uma reelaboração plena de implicações filosóficas e antropológicas do mito de Robinson Crusoé. Michel Tournier tinha estudado filosofia. Foi, aliás, na universidade que teve como colega Gilles Deleuze, do qual foi amigo muito próximo.

A Deleuze deve Tournier um longo e profundo ensaio sobre esse seu primeiro romance, publicado no final de Logique du Sens, que muito contribuiu para o reconhecimento público do romancista. Um reconhecimento que se acentua com O Rei dos Álamos, o romance que publicou três anos depois, em 1970, e que lhe valeu o Prémio Goncourt (Sexta-Feira tinha obtido o prémio da Academia Francesa) e que é ainda alimentado com Os Meteoros, de 1975. Mas a partir daí a luminosidade que Tournier tinha alcançado começa a declinar. Os livros que publicou a seguir estão longe de obter o mesmo reconhecimento e, já nos anos 1990, a recepção crítica dos seus últimos livros foi muito pouco favorável.

Ele foi um escritor que queria ser lido por todos os estratos de leitores e que aspirava à universalidade. O seu meio nunca foi o dos intelectuais franceses e muito menos dos parisienses. E a sua escrita do romance procurava uma limpidez que devia muito mais aos grandes romancistas da segunda metade do século XIX do que às experiências vanguardistas do século XX.

Essa vontade de ser lido, sem pressupostos elitistas, determinou certamente a versão juvenil que fez do seu primeiro romance: Sexta-Feira ou a Vida Selvagem (Editorial Presença), assim se chama essa versão, da qual se fez uma adaptação para uma série da televisão francesa. Isso – e o facto de esse livro juvenil ter entrado nos programas escolares – garantiu durante muito tempo a grande irradiação pública de Michel Tournier.

Com esse romance, o escritor definiu o espaço literário em que se quis sempre situar. Para ele, o romance devia ser a elevação de uma história à condição de mito, o que sempre o desviou de todo o realismo e intimismo. O Eu e a realidade empírica imediata nunca foram matéria dos seus livros e causavam-lhe até um acentuado repúdio. Percebemos assim que ele tenha passado do mito de Robinson para o ogre de um célebre poema de Goethe para fazer uma alegoria do nazismo (em O Rei dos Álamos), e tenha a seguir reinterpretado o fascinante mito da gemelidade em Os Meteoros.

A propósito de O Rei dos Álamos, importa dizer que, na sua formação literária e intelectual, Tournier impregnou-se de cultura e literatura alemãs (até como tradutor de escritores alemães, antes de se ter tornado romancista). Apesar da sua formação universitária em filosofia, nunca foi um filósofo e, num livro de ensaios autobiográficos que é também uma reflexão sobre a sua arte do romance, confessa como o convívio com Deleuze o fez perceber a sua menoridade no campo da filosofia.

No entanto, dois filósofos ocupam um lugar destacado no seu panteão: Kant e Leibniz. É de resto o mundo fechado e harmonioso da mónada leibniziana que serve de modelo à estrutura dos seus romances. O que os caracteriza é, de facto, uma estrutura arquitectónica rigorosa e perfeita que lhes dá o aspecto de artefacto muito bem construído por um autor demiurgo que se assemelha ao Deus leibniziano.

Esse lado de artifício onde tudo parece estar predeterminado resulta muitas vezes num estrito monologismo e acabou por constituir a maior fragilidade dos últimos romances de Tournier. Como escritor, foi um defensor de valores clássicos. Escreveu sempre como se não tivesse sido contemporâneo do nouveau roman .

De toda a sua obra, um conto merece ser considerado uma pérola preciosa. Chama-se Os Sudários de Verónica e é uma evidente manifestação do enorme interesse (teórico e prático: também fez fotografia, mas assumiu sempre os seus fracos talentos) que Tournier sempre teve pela fotografia. De resto, foi um dos fundadores, no início dos anos 1970, dos Encontros de Fotografia de Arles. A fotografia foi ainda objecto de alguns dos seus textos críticos e ensaísticos. Escreveu, por exemplo, sobre Édouard Boubat, de quem foi amigo.

No seu percurso intelectual, viu-se envolvido em três grandes polémicas: a primeira, foi com Jean Améry (um sobrevivente de Auschwitz, que escreveu sobre os campos e se suicidou), que viu em O Rei dos Álamos “uma apologia do nazismo”; a segunda foi com as feministas, que leram em Os Meteoros algumas frases de uma misoginia muito evidente, com laivos de escandalosa. Tournier defendeu-se, negou. Mas talvez ainda mais notável do que essa alegada misoginia é a ausência de mulheres entre as suas personagens. O universo feminino – e sobretudo a sexualidade feminina – ficou sempre de fora. A terceira polémica teve como motivo a sua radical condenação do aborto, que exprimiu nesta declaração à revista Newsweek: “Quem pratica o aborto são os filhos e netos dos monstros de Auschwitz.”  

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