Miami, uma estreia

1. Até à semana passada, o mais perto que tinha estado de Miami era a Barra da Tijuca. A Barra quer tanto ser Miami que deixou de ser Rio de Janeiro, embora oficialmente se mantenha como um bairro carioca. Aliás, fazendo justiça, a Barra não deixou de ser Rio de Janeiro. A Barra é o Rio de Janeiro que quer ser Miami. Nunca entendi o que é que no Rio de Janeiro podia querer ser Miami, sendo que também nunca tinha ido a Miami. Agora que fui continuo sem entender, mas pelo menos sei que a Barra não é Miami.

2. A Barra será Miami lá pelo ano 3000, disse um carioca com quem por acaso jantei ontem. É uma versão, apesar de tudo, optimista, porque na versão pessimista o problema da Barra não é só o que lhe falta mas também o que lhe sobra, como aquela torre monumental que saiu errada, e não dá para implodir ou corrigir.

3. Em suma, nunca pensei ir a Miami, e depois de morar no Rio de Janeiro pensei especificamente em não ir a Miami. Até que na semana passada tive de chegar a uma cidade mexicana para onde a ligação menos ruinosa era via Miami, com uma escala de 24 horas.

4. Onde ficar em Miami, tendo 24 horas na cidade, perguntei a um fã de Miami. Fã pelo menos o bastante para achar que isso nem é pergunta: Miami Beach, claro.

5. Eu nem sabia que Miami Beach era uma cidade diferente de Miami.

6. Fui à Wikipedia: Miami Beach não só é uma cidade diferente como começou antes de Miami, quando uns tais Henry e Charles Lum, pai e filho, decidiram comprar aquela língua de areia oceânica ao preço de 76 cêntimos por acre. Um acre são 4000 metros quadrados, portanto uma pechincha, mesmo considerando que isto se passou em 1870. Seis anos depois, a primeira construção foi um refúgio para náufragos. Seguiram-se coqueirais, desbaste de mata, canais para transportar as colheitas, plantações de abacate, tudo isto até alguém olhar como deve ser a praia. Quando veio a II Guerra Mundial, já Miami era uma espécie de Riviera Americana, centenas de casas, prédios e hotéis que hoje são um clássico da arquitectura Art Deco.

7. Perguntei a uma outra fã de Miami se tinha alguma sugestão menos clássica, definitivamente abaixo de 50 dólares. Ela tinha, e a um quarteirão da praia, e se eu apanhasse um autocarro no aeroporto saltava à porta por 2,65 dólares. Aterrei com cinco horas de jetlag e dois pés atrás, embirrando com tudo, desde o tapete que desliza ao longo de um mural de flores coloridas formando frases dos Beatles, tipo ALL YOU NEED IS LOVE, ALL TOGETHER NOW. América, a tua infinita fé na felicidade. Eu partira de Lisboa às dez de manhã, voara mais de oito horas e ainda era hora de almoço. Toda uma tarde em Miami quando eu só queria dormir. Foi então que saí do ar condicionado.

8. Mormaço. Downtown de arranha-céus, asfalto, ponte, mas tudo isso envolto num mormaço tropical, com palmeiras, acácias-rubras, a vida de havaianas. O autocarro dobra para a Indian Creek Road, eu salto na esquina com a Rua 27 e dez minutos depois do check in uma brecha no meio dos prédios abre para um passadiço entre dunas brancas, com uma tira verde-jade por cima. É o Atlântico tropical, com ondas mas quente, praião quase deserto na véspera de Santo António. Nem o vento arrepia.

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9. Bem abaixo de 50 dólares foram na verdade 28, quase um quarto individual, já que as duas chilenas que o partilhavam só se deitaram à hora a que acordei com as mesmas cinco horas de jetlag e menos um pé atrás.

10. Às sete da manhã de sábado, a Indian Creek Road desagua silenciosamente na Collins Avenue, a paralela à praia onde os hotéis têm cumes cinematográficos. Torço o pescoço para ler: DELANO. Soa uma campainha, embora eu não seja capaz de dizer qual. Talvez daqui a nada haja limusines, multidões, por enquanto nada. Entre os hotéis, um jardim com museu e biblioteca pública, anúncios do Memorial do Holocausto, um mendigo a dormir no chão, montras com biquínis stars & stripes, scooters vintage, pranchas de surf. Se nada é a preto e branco quando chegamos perto, Miami também não ia ser. Entre morar aqui para sempre e cortar já os pulsos é possível dar um passeio.

11. Inventei como destino o Flamingo Park porque é uma grande mancha verde no mapa. Então volto na Espagnola Road, que tem aquele ar das ruas de restaurantes na manhã seguinte, como se o eco da multidão ainda pairasse sobre as mesas, algures entre a Brazilian Food & Tapas e a Havana 1957 Cuban Cuisine. Ainda bem que não são sequer oito da manhã.

12. Os restaurantes dão lugar a casas com pátios tropicais, com placas como “The Marquesa, built in 1935”. Hemingway pode ter parado aqui a acender um charuto, já que se mudou para Key West em 1931 e morou lá dez anos. Se alguma vez voltar a Miami por mais de 24 horas, vou a Key West.

13. Esquilos trepam às árvores, filhos jogam ténis, pais cobrem os carros não vá vir uma tempestade, eis todo o movimento neste interior de Miami Beach. Mas, eureka, como bem lembra a sinagoga Emanu-el, e depois dela cada edifício nomeado a partir da família judia que o patrocinou, para boa parte da população é simplesmente shabat.

14. Viro na Rua 12 de volta à costa. Rua 12 já é South Beach, onde a paralela ao mar se chama Ocean Drive. Cada quarteirão tem um passadiço que leva à praia, com uma cancela que fecha entre a meia-noite e as cinco da manhã, suponho que para impedir gente de dormir na praia. Está quente o bastante para isso, mesmo a esta hora. Mas não há mais gente do que lá fora. Tractores passam a alisar a areia. Rapazes montam as espeguiçadeiras dos hotéis. E tudo, como em toda a parte em Miami, está escrito em inglês e espanhol.

15. Fui e vim do México, e o que me esperava no aeroporto de Miami era um Boeing 777 cheio de brasileiros e de malas de 32 quilos, duas por passageiro, fora bagagem de mão. Quando chegámos a São Paulo, deu-se uma estranha divisão, enquanto eu e uns gatos pingados saímos para a recolha de bagagem, centenas seguiram pelo corredor dos passageiros em trânsito. Deviam ir todos para a Barra da Tijuca.

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