Mais brilhante do que o sol

A inesperada ousadia de José Luís Peixoto - pegar no tema da aparição de Fátima -, seria já merecedora de espanto. Porém, o que mais surpreende é que o resultado, Em Teu Ventre , seja um dos melhores livros de Peixoto (se não mesmo o melhor).

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Os bons sentimentos e o lirismo trabalhoso costumam atrapalhar Peixoto — não aqui Miguel Manso

O assunto do último livro de José Luís Peixoto (n. 1974) é especioso. Reconhecida-mente especioso. E não gentil. Quase se poderia dizer que, em Portugal, chega a ser um tema fracturante. Trata-se da alegada (tal como dizem em linguagem jurídico-jornalística) aparição, numa azinheira da Cova da Iria, em Fátima, da Virgem Maria. Por três vezes, entre Maio e Outubro de 1917, a Mãe de Jesus Cristo ter-se-á revelado diante de três pastorinhos, Lúcia (então com dez anos de idade), Francisco (nove) e Jacinta (sete). Na sua inesgotável posteridade, tais encontros imediatos de terceiro grau (dir-se-ia em linguagem cinéfila) podem suscitar eventualmente, hoje ainda, ou a paixão dos crentes ou o desdém dos ateus, mas dificilmente sobressaltam a indiferença dos agnósticos. O livro Em Teu Ventre não toma partido e como que naturaliza, e subjuga à ficção, as aparições da “Senhora mais brilhante do que o Sol”. Digamos que, anulando ou secundarizando expansões metafísicas ou religiosas, este livro toma o partido do imanente quotidiano, campestre e pobre, o partido da água “fresca e salitrosa” e do “pão com pingo”. Toma “o partido das coisas”, como diria Francis Ponge. Na novela de Peixoto, a transcendência é como que um resíduo do lirismo, que, na obra do autor, sempre ressumbra de personagens, paisagens e acontecimentos. A inesperada ousadia do escritor, ao pegar em tão intratável assunto, seria já merecedora de elogio. Ou de espanto. Porém, o que mais surpreende é que o resultado seja (quase) airosamente conseguido, fazendo de Em Teu Ventre um dos melhores livros de Peixoto (se não for mesmo o melhor).

Em Teu Ventre é uma novela a várias vozes, e uma delas pertence à própria divindade, que nos fala regularmente ao longo do livro através de versículos balsâmicos, propedêuticos e programáticos. Fala-nos Lúcia, por interposto e impessoal narrador. E fala-nos, entre parêntesis, Maria, a mãe de Lúcia, que, por aqueles dias, “a cada passo, deixa escapar lágrimas que a desgostam. Sente o cheiro verde dos figos a rebentarem nos ramos e chora, recebe uma aragem súbita na nuca e chora, varre a cinza do lume apagado e chora” (p. 22). Antonomástica e multímoda, Maria é também Mãe de Jesus, é mãe de mães. Curiosamente, portanto, corre entre parêntesis o veio mais sentimental da novela (e tal sentimentalidade é frequentemente, na obra de Peixoto, a sua qualidade mais debilitante) e o seu subtexto último: a condição maternal. E lê-se, lá para o final: “[…] quando não me achares na tua cabeça, será porque tu próprio não estás lá. Sou a tua mãe, sou o universo. Acredita: nunca me conseguirás manter entre parêntesis” (p. 153).

Na obra de Peixoto, poeticidade rima frequentemente com toxicidade. A prosa do autor costuma enrodilhar-se em si mesma, numa espécie de autodeslumbramento lírico que, ora se torna esgotante, ora em si mesmo se esgota. O estipêndio de imagens e construções desejadamente poéticas ou poetizantes não raro afoga as suas narrativas. Os sentimentos (os bons, em particular) e o lirismo trabalhoso sempre atrapalham. Isto é especialmente verdadeiro em Peixoto. O enlevo lírico não está ausente desta novela: “[…] as cigarras estendem o seu tumulto por toda a paisagem, como uma multidão de consciências” (p. 99). Mas não chega a enovelar-se. Em Teu Ventre talvez se salve pela brevidade. Mas salva-se: “O ar é fino, carrega o sabor e a sombra dos montes e dos cabeços, perfume de eucaliptos, pinheiros, seiva velha de oliveiras. Parece um tempo simples” (p. 49). É um tempo simples. 

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