Macau tira Camilo Pessanha do buraco

Uma nova tradução chinesa da Clepsidra foi lançada no Festival de Literatura de Macau. O escritor Paulo José Miranda, que há 15 anos ali foi atrás de Pessanha, também voltou para o reencontrar.

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O poeta de Clepsidra morreu em Macau em 1926 PEDRO CUNHA/ARQUIVO

Há já 15 anos que Paulo José Miranda não vinha a Macau. Talvez por estar demasiado frio e a humidade não ser a habitual, só ao segundo dia reencontrou o cheiro perturbador das primeiras semanas que aqui passou.

Foi com uma bolsa de criação literária concedida pela Fundação Oriente que o escritor, Prémio José Saramago em 1999, esteve três meses em Macau para escrever O Mal, publicado em 2002 na série Oriental Viagens da editora Cotovia. Ali contava a história de um homem que chega à cidade para escrever sobre o poeta Camilo Pessanha (1867-1926), o autor de Clepsidra, e fazia um retrato de Macau na época da transição para a administração chinesa. Entretanto, Paulo José Miranda viveu no Brasil e estabeleceu-se em Lisboa. Mas está de regresso ao território a convite do Festival Literário de Macau – Rota das Letras, que vai na quinta edição. 

“Pessanha deve ter ficado muito perturbado com as ruas de Macau, que, mais do que o cheiro, que pode ser bastante perturbador nas primeiras semanas, causam ligeira deturpação no nosso olhar […]. Mas o que mais perplexos nos deixa é este incómodo dos sentidos, esta brisa de incómodo, ser como que a materialização dos versos de Pessanha. Sem dúvida que Macau é muito mais Pessanha do que Lisboa é Pessoa. O que não ajuda nada à cronologia. Pois, segundo parece, o poeta escreveu os seus poemas antes daqui ter chegado”, lê-se na página 56 do livro que Hélder Beja, moderador da sessão Camilo Pessanha e o Mal e sub-director do festival, diz ser invisível mas ao mesmo tempo incontornável. “O Mal é quase invisível aqui. Mas é considerado um dos melhores livros escritos sobre esta cidade a partir da viragem do século. É um livro muito duro para com Macau, também para com Portugal. É agressivo, completamente desconfortável. Mas a literatura também pode ou deve ser isso.”

Ao trazer Paulo José Miranda, que para muitos “odiou Macau” tal como Camilo Pessanha já tinha odiado (dizia aliás, quando ali voltava, que voltava para “o buraco”), os directores do festival quiseram ajudar à reflexão sobre o que é ser português neste lugar do Oriente e tão longe da pátria. “Fazer com que nós, os portugueses que vivem em Macau, nos olhássemos ao espelho e nos confrontássemos com aquilo que é viver-se aqui. Nem sempre é uma coisa fácil, nem sempre tudo são rosas”, aponta Hélder Beja ao PÚBLICO no final da sessão em que se discutiu se Macau foi a causa da destruição do poeta que aqui se viciou em ópio.


Pessanha, o grande

O Festival Literário de Macau nasceu em 2012, depois de muitas conversas entre Ricardo Pinto, administrador do jornal Ponto Final, e Hélder Beja, actual editor-chefe da revista Macau Closer. Ambos, respectivamente director e sub-director do festival, tinham a sensação muito evidente de que “estranhamente” ninguém estava a escrever sobre Macau, e queriam mudar esse estado de coisas (agora, o festival pede aos autores que por aqui passam que escrevam sobre Macau e publica esses textos). “Isso não acontecera nas décadas anteriores porque, de uma forma ou de outra, houve sempre autores a escrever sobre Macau: a Maria Ondina Braga, o João Aguiar, o Henrique de Senna Fernandes, o Rodrigo Leal de Carvalho, que era um jurista e publicou vários livros”, explica Hélder Beja. 

Sem literatura a ser produzida para o acompanhar, a cidade parecia no entanto estar a atravessar um período muito interessante. E nenhum dos dois tinha dúvidas de que Macau era o local óbvio para se fazer um encontro deste género. Conheciam a história da Festa Literária Internacional de Paraty, que foi a principal inspiração, e o festival literário Correntes d’Escritas. Entretanto, Ricardo Pinto conseguiu a concessão da Livraria Portuguesa, o que dava à ideia ainda mais sentido. “Já tínhamos o jornal diário e a revista mensal; criando-se o festival e tendo a livraria portuguesa, tudo funcionava em circuito. Nesse ano de 2011 decidimos avançar para a primeira edição, sem experiência e com muito pouca estrutura”, explicam.

Nesta quinta edição, o festival homenageia o chinês Tang Xianzu (1550- 1616), autor de O Pavilhão das Peónias, e, nos 90 anos da sua morte (que se cumpriram a 1 de Março), o português Camilo Pessanha. “Ele é considerado um dos grandes, se não o maior poeta que alguma vez viveu em Macau, e há registos vários da sua presença aqui. É de facto um homem que marcou o seu tempo em Macau, também como professor, jurista e sinólogo. Pelo facto de ser um autor um pouco esquecido pelas novas gerações, fazia todo o sentido homenageá-lo”, justifica Hélder Beja. 

Quem vier a Macau e quiser andar à cata da presença do poeta pode visitar o seu túmulo, ir à Rua Camilo Pessanha (onde curiosamente fica o escritório do festival), passear pelas zonas onde se sabe que viveu, entrar no liceu onde ele ensinou ou meter-se nas bibliotecas, aconselha o sub-director do Rota das Letras. No festival, o poeta está também representado em alguns dos trabalhos dos artistas plásticos convidados expostos no Edifício do Antigo Tribunal, onde decorre grande parte das sessões do evento que começou no dia 5 de Março e termina no próximo fim-de-semana. 

Musicalidade
A primeira edição da Clepsidra em língua chinesa foi publicada em 1997 na colecção Biblioteca Básica de Autores Portugueses do Instituto Cultural, com tradução de Chen Yong Yi, que não é poeta. Por isso, era grande a expectativa quanto à nova tradução desta importante obra do simbolismo feita por Yao Feng, poeta e tradutor que nasceu em Pequim mas vive em Macau desde os anos 1990, tendo no seu currículo traduções de Sophia, Pessoa ou Eugénio de Andrade. A obra foi lançada durante a sessão As Muitas Faces de Camilo Pessanha, que reuniu o académico português Daniel Pires e o brasileiro Paulo Franchetti, além do médico macaense Pedro Barreiros, cuja família conviveu com Pessanha, e do tradutor desta nova edição, Yao Feng. 

No final de uma sessão que juntou poetas portugueses, brasileiros e chineses numa mesma sala, Yao Feng, que também é sub-director do festival, contou ao PÚBLICO como nasceu a ideia desta nova tradução. “Na verdade, foi uma encomenda que me fizeram. A tradução ficou pronta e acabou por não chegar a ser publicada durante anos.”

Quando se começou a pensar nesta edição do festival e se pensou homenagear o poeta português, que nasceu em Coimbra, morreu em Macau e influenciou a geração da revista Orpheu, Feng lembrou-se dessa tradução que tinha guardada e levou adiante a publicação. “Fiz tudo num mês, a tradução, a revisão e a capa. Foi um trabalho intenso.” É uma edição bilingue, em português e chinês (“A língua oficial é o mandarim e o dialecto é o cantonês, mas a escrita é a mesma”, explica o tradutor). “A nossa língua tem o seu próprio sistema de fazer efeitos sonoros, musicais, eu fiz o possível para encontrar equivalências e para jogar com as rimas, mas em chinês. A musicalidade é importante. Ajuda a tornar o poema da língua de partida no poema na língua de chegada. Às vezes, temos poemas muito bons na língua de partida e com uma tradução sem qualidade, ficam estragados. Não sei se a minha tradução tem este defeito ou não, mas eu fiz o possível. Não foi fácil”, diz o poeta que agora está a traduzir o brasileiro Carlos Drummond de Andrade. “Tem uma linguagem muito acessível, mas aquele jogo de palavras é outro desafio." 

Ao que Yao Feng sabe, não se aprende nada da obra de Pessanha nas escolas chinesas. Quando lhe perguntamos se acha que esta nova tradução vai mudar alguma coisa, diz que “um ou dois poemas dele poderiam ser referência para a realidade de Macau daquele tempo, mas mais para adultos, pois custa compreender este poeta e os alunos da escola primária e secundária teriam dificuldade”.

Na livraria improvisada do festival, a nova tradução já vendeu cerca de 30 exemplares. “São pessoas mais velhas que compram o livro, porque é um nome conhecido, sabem da ligação com Macau. A nova geração tem outras coisas a que pertencer. Camilo Pessanha já é para eles uma coisa muito do século passado. Está muito longe. Aliás, é difícil que este tipo de poesia, que joga sempre com rimas de uma forma tão rigorosa, atraia jovens hoje em dia. O que atrai os jovens chineses são poetas como aquele poeta e editor de Pequim que faz versos livres. Chama-se Shen Haobo. E já não têm paciência para essas regras da melodia.”

O PÚBLICO viajou a convite do Festival Literário de Macau – Rota das Letras

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