Luz sombria

Não, não vou falar sobre as sombras que continuam a pairar sobre o nosso país: o desemprego, a pobreza, os maus resultados na educação, o péssimo funcionamento dos tribunais, o abandono da cultura. Nem vou escrever sobre as próximas eleições, embora a campanha eleitoral já se tenha iniciado, com a habitual ausência de debate sério e a presença constante de “casos” pessoais.

Quero falar de um livro que recomendo aos meus leitores: Má Luz, de Carlos Castán, publicado agora em Portugal pela Teorema, numa boa tradução de Maria do Carmo Abreu.

Carlos Castán é um autor espanhol sobretudo conhecido pelas narrativas breves. Especialista da arte do conto, já recebeu o Prémio Vargas Llosa pelo seu livro Solo de lo perdido (Ediciones Destino, 2008). Má Luz é o seu primeiro romance.

A Castán interessa a intimidade, o jogo de sombras, a ansiedade e o sentido colectivo da existência. Nascido em 1960, diz ter sido influenciado por Borges e Cortázar, sendo Rayuela — O Jogo do Mundo o livro que o pôs a escrever. Natural de Barcelona, não se sente vibrar com a questão da independência da Catalunha, prefere a dinâmica das suas aulas de Filosofia e a maior tranquilidade de Zaragoza.

Má Luz é um magnífico romance sobre a procura da identidade, o medo que existe no íntimo de todos nós e a incessante busca de um sentido para a existência, a que não falta a interrogação constante sobre o comportamento colectivo, de que a referência a Auschwitz é o exemplo mais notório.

A escrita é muito intimista, sempre a oscilar entre o permanente questionar de um sentido para o quotidiano e o monólogo sobre os fantasmas interiores do protagonista, um homem de quem nem sequer ficamos a saber o nome. Este narrador muda a sua já angustiada existência quando descobre que o seu melhor amigo foi morto à facada, depois de ter solicitado várias vezes para o proteger de uma perseguição de que não se adivinha a causa.

O narrador como que se apropria da vida do amigo desaparecido e passa a procurar indícios nas conversas entre os dois, na desarrumação da casa, nos livros de que ambos falavam (Pessoa, Duras, Célan), nas ruas de Zaragoza e nos pesadelos que o angustiam. Há um fundo sombrio de noites toldadas pelo álcool e pelo sexo, onde emergem monólogos interiores e dúvidas permanentes sobre o seu papel no mundo.

Pouco sabemos da vida real deste protagonista. Má Luz é um romance com poucas personagens, porque o que interessa a Castán é o que se passa no inconsciente de cada um. No entanto, sabemos que vive um pós-divórcio, que existem dois filhos de um casamento falhado e uma mãe numa instituição, que o narrador visita a espaços e que mal o reconhece.

A escrita é obsessiva, por vezes torrencial na descrição das emoções: “Nalgumas sextas-feiras vinham os miúdos (…). Com todas essas malas pelo meio, sacos de viagem cheios de mudas de roupas, pijamas e pequenos brinquedos, mochilas com os deveres da escola, casacos amontoados, parecíamos os sobreviventes de uma família num acampamento de refugiados. (…) E interrogava-me também se era preferível um pai morto a um pai derrotado que se afunda diante dos seus olhos sem que possam fazer nada, sem que entendam nada.”

Má Luz interroga o mundo à nossa volta, faz-nos pensar no nosso eu íntimo, no sentido dos impulsos que nos assaltam, na culpa que por vezes nos persegue. O inesperado final evoca a surpresa clássica de um policial, mas será muito redutor ler o livro dessa forma: Má Luz é a nossa angústia.     

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