Livros de farmácia

Lemos Dalton Trevisan e começamos a olhar desconfiados para as pessoas. Os amores matam, as amizades matam, a mais leve incúria pode matar. Lemos os textos de Dalton Trevisan e entramos numa tradução, sem piedade turística, daquilo que é o Brasil. A beleza e a festividade do país é acompanhada por uma possibilidade, diria até probabilidade, do susto que, na Literatura, exerce o atónito a cada página.

Dalton Trevisan é uma mão na bunda durante a escuridão. Ele está no medo ou no incómodo de cada um. Não permite a ingenuidade nem o sossego. Por isso é que ler os seus livros se torna uma prática de cidadania consciente. Um modo de estar alerta ao real, efectivamente com o seu susto mas também com a sua maravilha.

Regressei à extensa obra de Trevisan depois de uma viagem a Curitiba, a cidade onde vive e a que sempre alude. Muita gente se vê ou revê no que o sábio mestre conta. Do lado de quem dá ou do lado de quem leva, os curitibanos falam de Trevisan com um carinho cúmplice, como se o escritor fosse um velho pai que todos escondessem lá em casa. A mitologia importa pouco. Importa, sim, a extensa biblioteca. O que os curitibanos comentam passa por esse reconhecimento de um gingado que dá para a felicidade e para muita tristeza. Ou seja, uma forma de procurar ser esperto que umas vezes sucede e outras desgraça tudo. É um destino estabelecido perigosamente. Um destino incerto que fica a depender do tal gingado, como da maior ou menor leitura de Trevisan que cada cidadão tiver.

Ler Trevisan é cuidar da vida. Ler Trevisan favorece a sobrevivência. Os seus livros deviam estar à venda nas farmácias. Deviam, ao menos, estar à venda nos balcões de todos os departamentos públicos onde se vão discutir direitos e seguranças. Trevisan precisava ser eleito, reeleito, precisava de mandar. A sua lucidez e o seu sem rodeio é política e é sempre o que falta ao poder.

Gosto muito da brevidade de Trevisan. Os textos sem enrolação. O mundo transparece. É explícito e cria a surpresa exactamente por despir cada coisa. Fica tudo na cara. Só o incauto não percebe a cercania do perigo. O incauto e aquele que sente atracção. Porque quem se atrai pelo perigo conta, ainda assim, poder regressar. Nos livros de Dalton Trevisan não há regresso, porque explicam tudo sobre brincar com o fogo. Eles pegam fogo diante dos olhos dos leitores. São uma entrada na maioridade. Não é exequível recuperarmos a inocência, que é o mesmo que dizer: depois de lermos Trevisan não nos podemos livrar da culpa. Ficamos adultos e ser adulto é ser culpado, ao menos até ao dia em que todas as atrocidades sociais não forem responsavelmente sanadas. Enquanto resultarmos apenas em cidadãos demitidos e incapazes, a Literatura vai expor tudo em que falhamos e, por isso, tudo o que tememos. Dalton Trevisan faz isso. Joga com a nossa demissão e incapacidade, medindo-nos através da esperança infundada, dos amores proibidos, do desejo e das gulas carnais sempre erráticas e egoístas.

Lembro-me de ler pela primeira vez Meu Querido Assassino. Adorei o título, havia umas fotografias antigas na capa, mulheres despindo-se, prostitutas. Vem ao de cima o lado festivo da degradação. É o que se põe de isco para a perdição de todos nós. O lado festivo que nos apela aos sentidos e parece investir na nossa auto-estima. A degradação, ou o perigo de que falava acima, guarda-se no deslumbre. A vontade de apagar pormenores e mesmizar os dias, focar numa só questão. Lembro-me de ler Meu Querido Assassino e, na sucessão de contos, achar que a redenção estava anunciada em toda a parte. Por algum motivo (preconceito), a felicidade não se consumava, mas ela estava prometida em toda a parte. As pistas são muitas. Deste livro, o meu conto favorito é um chamado O Confessor. A dada altura, a moça diz: “Sabe, João? Já tenho quem me adore.”. É muito simples (ou talvez não), mas resume a vida inteira e o seu propósito. Sabemos que é inevitável adorarmos alguém, precisamos de encontrar modo de ter alguém que retribua. Assim: adoração, sem tretas e sem contenções. É o que queremos. A vida, na verdade, é sempre como apenas um conto. Muito breve, fugaz, deixará poucas oportunidades para que tenhamos o mais importante. Não encontrar é fácil e perder é fácil. Ficam sempre os livros. São sinceros. Eles amam-nos mesmo quando nos falam só das tragédias mais terríveis.

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