Lisboa triste e alegre

1. Um bravo militante da Graça escreveu-me a propósito de uma injustiça na crónica lisboeta de domingo passado. Aquela volta mirabolante que as viaturas são obrigadas a dar quando vêm do miradouro e querem ir para a esquerda afinal não é mirabolante: acidentes aconteciam, gente chegou a morrer no tempo em que a obrigação não existia, ele é antigo o bastante no bairro para se lembrar disso. Selvagem sem carta nem memória, eu agradeço e emendo, além de que uma cidade que tem a Graça não se queixa assim de lhe dar mais uma voltinha. Durante anos, subir a um dos miradouros da Graça foi o meu ritual de chegada a Lisboa mal entrava em casa, logo abaixo, em Alfama. Isto para dizer que a minha actual distância dessa colina é só o excesso de proximidade que leva à autodeterminação.

2. Da minha nova colina, entre o Cais do Sodré e a Ajuda, vejo três nespereiras, uma oliveira, vários pinheiros, várias laranjeiras, uma grande araucária que tapa o boneco do Cristo-Rei em certos ângulos e o que parece a fímbria de uma palmeira ainda intacta. Sou uma selvagem retornada, não sabia que as palmeiras de Lisboa estavam a morrer assim aos milhares até um amigo agora me levantar os olhos, copas e copas caídas, desvitalizadas pelo robusto Rhynchophorus ferrugineus, mais temido como escaravelho (ou gorgulho) vermelho. Este ferruginoso comedor estreou-se no Algarve, subiu ao Porto, alcançou a Madeira, só lhe faltam os Açores, se entretanto a Easy Jet não o tiver levado. Tem menos de cinco centímetros, mas as fêmeas põem duzentos a trezentos ovos, que crescem em menos de meio ano. Cada palmeira, leio, chega a alojar mil escaravelhos que depois podem voar até dez quilómetros, e também apanham boleias. Basta uma palmeira doente para contaminar todas as outras num raio de muito alcance. Na véspera desta crónica, só no jardim mais perto da minha nova casa avistavam-se duas palmeiras abatidas de manhã e uma terceira à tarde. Ali estavam, como grandes mamutes descoroados, porque a morte se decide na copa, e é o ínfimo que rói o grande, sempre foi.

3. Difícil imaginar o horizonte sem essa alegria tropical, estrela de muitos braços, contra o céu, contra o Norte. A palmeira estremece

palmas para ela / que ela merece, compôs o bigodudo Paulo Leminski, brasileiro cinquenta por cento polaco, cem por cento tropical. Nunca vi tantas palmeiras diferentes como no Brasil, desde a buriti com que os índios da Amazónia entrançam cestos, esteiras, redes de dormir, às palmeiras imperiais da carioca rua Paissandu, mandadas plantar em 1865 por D. Pedro II. Depois, quando mudei do Rio de Janeiro para Montemor-o-Novo, a minha rua alentejana terminava no Largo das Palmeiras, e um dos caminhos para a minha nova casa é pela Rua da Palmeira.

4. O primeiro palpite do militante da Graça é que essa nova casa seria nas Necessidades, porque eu disse que a vista era de aldeia, mais do que a vista, os sons: galos, gatos, sinos, que entretanto se multiplicaram. O segundo palpite foi que seria no Alto de Santo Amaro. Entretanto, eu ia almoçando uma cabidela na tasca da rua de baixo, onde um almoço facilmente escorrega até às cinco da tarde, empurrado por jarrinhos de tinto da casa, tudo excelente e por um terço do preço daqueles restaurantes que escrevem sorbet no menu, e servem pratos principais do tamanho de entradas. Lisboa está tão farsante como qualquer cidade cheia de gringos, mas ainda basta descer uma rua, meter pelas traseiras, que a cabidela continua a vir em tachos fumegantes, se for dia dela, pelo menos nesta colina.

5. Também se come bem na Graça mas há tuk-tuks.

6. A propósito: num dos caminhos entre o Cais do Sodré e a nova casa atravessou-se à minha frente um estranho ser anfíbio. Tinha rodas, um toldo e cerca de 14 gringos a enfrascarem-se on the road. A tabuleta nas traseiras dizia: Bike Bar Tours. Parecia o próprio contra-anúncio do Se Beber, Não Conduza, mas a verdade é que não consegui avistar o condutor, concedo que estivesse totalmente sóbrio, se é que a palavra se pode aplicar a quem conduz uma coisa destas. Era dia claro. A partir de que hora mesmo é decente beber em movimento?

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7. Calhariz, Camões, Chiado: em vez dos vencidos da vida, magotes de gringos. Se eu fosse gringa, também vinha a Lisboa, mas primeiro ia a Atenas. Eles sabem o que fazer aos magotes e aos gringos. Talvez até às palmeiras colonizadas.     

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