Lello & Companhia estudam passaporte para a defesa da leitura

Como resgatar as livrarias mais belas do mundo da predação do turismo? Ponto de partida para uma discussão agora iniciada no Porto com o objectivo de criar uma rede internacional de lojas históricas.

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Representantes de algumas das livrarias mais belas do mundo na Lello Manuel Roberto
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Luís Filipe Castro Mendes na Lello Manuel Roberto
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A Lello é uma livraria centenária Manuel Roberto
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Representantes de algumas das livrarias mais belas do mundo na Lello Manuel Roberto
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Inauguração da Livraria Lello, em 1906 Fundo de Fotografia Aurélio da Paz dos Reis/ Imagem cedida pelo Centro Português de Fotografia

Ainda não eram dez horas na manhã deste domingo, e já duas dezenas de turistas faziam bicha à entrada da Livraria Lello, no Porto, cujas assistentes alertavam os visitantes para que a hora de abertura iria ser atrasada cerca de meia hora, por causa do Dia Mundial do Livro.

A acumulação dos visitantes à porta, que se vem repetindo desde que, há meia dúzia de anos, passou a integrar a lista das mais belas livrarias do mundo, expressa bem o quadro novo com que a Lello, e outras casas de livros com características idênticas, se vêm confrontando no dia-a-dia: privilegiar o negócio dos livros ou a procura turística?

A consciência deste facto levou a Lello a aproveitar, este ano, o Dia Mundial do Livro para promover um encontro internacional com lojas internacionais congéneres para discutirem formas de colaboração e intercâmbio, e também de resposta às suas questões.

E a situação tanto envolve livrarias de grandes metrópoles, como a famosa Shakespeare & Company, em Paris, como a mais discreta Bart’s Books, na pequena cidade norte-americana de Ojai (cerca de 10 mil habitantes), no sul da Califórnia.

“Senti-me espantado quando entrei aqui na Lello. E mais ainda quando percebi que ela é centenária, quer dizer que é já mais velha do que a minha cidade, eu que venho também de um país que tem pouco mais de dois séculos”, dizia ao PÚBLICO Mat Henriksen, proprietário da Bart’s Books, no final da sessão na livraria portuense.

“O que é mais incrível é saber que ela foi projectada precisamente para ser uma livraria; e conseguiram fazer um verdadeiro templo dos livros”, exclamava, por sua vez, Sylvia Whitman, filha do fundador da Shakespeare & Company.

A Bart’s Books e a Shakespeare & Company foram duas das oito livrarias que corresponderam ao convite da Lello para participar neste primeiro encontro internacional de trabalho, que tem em vista debater e encontrar formas conjuntas de lidar com o título de “uma das livrarias mais bonitas do mundo”.

“Convidámos 14 livrarias em todo o mundo, com um critério que quisemos que fosse rigoroso, partindo de um número mínimo de citações nas listas de publicações europeias e americanas”, explicou ao PÚBLICO José Manuel Lello. Algumas não responderam, outras não puderam comparecer, mas com as oito que este fim-de-semana se quiseram fazer representar no Porto – a Atlantis Books (Santorini, Grécia), a Boekhandel Dominicanen (Maastricht, Holanda), a Cook & Book (Bruxelas, Bélgica), a Daunt Bookshop (Londres, Inglaterra), a Libreria Acqua Alta (Veneza, Itália) e a The Last Bookstore (Los Angeles, EUA), além das duas atrás citadas – a Lello espera dar o pontapé-de-saída na criação de uma rede e de “um programa internacional de intercâmbio de livreiros” que possa vir facilitar a troca de experiências.

Uma reunião de trabalho que se prolongaria pelo resto do domingo iria permitir o debate de propostas em que José Manuel Lello inclui “a criação de um passaporte das livrarias históricas e culturais”. “Vamos falar e ouvir o que as pessoas pensam, não queremos impor nada”, acrescentou o livreiro portuense.

Se, no caso da Lello, a pressão do turismo é a principal evidência, ela parece cruzar as outras lojas, mesmo que a níveis diferentes. Com o seu companheiro David Delannet ao lado, Sylvia Whitman considera “muito generosa” esta ideia de reunir uma dezena de livrarias de todo o mundo.

“Também nós temos o desafio do turismo, principalmente com os chineses que agora chegam a Paris cada vez em maior número. Temos de encontrar forma de gerir isso”, diz David. Na livraria junto à catedral de Notre-Dame, a solução – acrescenta Sylvia – foi criar uma estrutura de acolhimento obrigando também à formação de uma fila de espera, mas, até agora, sem o recurso ao pagamento de um vaucher, como foi feito pela Lello desde há quase dois anos – cuja importância é depois descontada no preço dos livros adquiridos.

“No nosso caso, foi uma experiência positiva, que cumpriu completamente o nosso objectivo, que era o de resgatar a livraria aos turistas, que estavam a ter uma atitude predadora, e devolvê-la aos leitores”, testemunha José Manuel Lello.

No caso da livraria parisiense, que se caracteriza por uma escassez de espaço ainda mais notória do que na sua congénere portuense, a preocupação dos proprietários tem sido “controlar o acesso e o ambiente interior, de forma a que as pessoas se sintam confortáveis”. “De resto, fora das horas do final da tarde, há muitos momentos em que as pessoas podem chegar e sentar-se tranquilamente a ler o seu livro”, diz David Delannet, lembrando também que a actividade da Shakespeare & Company continua a existir para além das horas de expediente, com o acolhimento de jovens escritores e a realização de encontros com os seus leitores, como acontecia no tempo do fundador George Whitman.

Situação bem diversa é a da Bart’s Books, que é fundamentalmente “uma livraria ao ar livre, onde os leitores podem consultar e ler os livros na rua, numa atmosfera muito mediterrânica, e numa cidade rodeada por um vale muito belo”, diz Mat Henriksen. E aí, se os visitantes chegam às centenas em cada dia, trata-se de um número bem inferior aos três mil que diariamente entram na Lello.

Os livros da vida deles

Mas os turistas são também compradores de livros. “E há aqui muitos livros dirigidos aos estrangeiros, com uma muito boa escolha de traduções de obras fundamentais da literatura portuguesa”, dizia o ministro da Cultura numa Lello já inundada de visitantes, no final da sessão comemorativa do Dia Mundial do Livro.

Tinha cabido, de resto, a Luís Filipe Castro Mendes abrir simbolicamente a livraria, onde entraram logo de seguida o seu colega de Governo Tiago Brandão Rodrigues, ministro da Educação, o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, e muitos outros convidados.

Na base da icónica escadaria vermelha da Lello, um “Camilo Castelo Branco” acolhia os visitantes. Já no piso de cima, em volta de uma vitrina com livros oferecidos pelas oito das “livrarias mais bonitas do mundo”, os dois ministros foram convidados a falar dos livros da sua vida. Tiago Brandão Rodrigues falou de dois títulos, unidos pela relação com o seu Alto Minho natal: Viagem a Portugal, de José Saramago, que classificou como “um livro fundamental e absolutamente fantástico” para descobrir o país; e Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro, que teve também a virtude de o obrigar a “aprender a usar o dicionário”.

Já Castro Mendes puxou a brasa para a sua poesia, e leu um poema do Livro Sexto de Sophia de Mello Breyner Andresen. “Foi um livro que influenciou muito a minha relação com a poesia”, justificou o ministro, mesmo se o primeiro livro que diz lembrar-se de ter lido terá sido uma edição da Majora, ainda com capa de pano.

Entretanto, Camilo continuava a andar por ali, mesmo se não já não existia aquando da inauguração da livraria, em 1906. E Rui Moreira aproveitou para lhe perguntar por Ana Plácido, duas figuras que, com a Cadeia da Relação ali ao lado (que ambos conheceram bem por dentro) e a própria Lello “são marcas simbólicas da cidade do Porto”.

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