Kronos, Paredes, Amália e Amélia

Comemorar traz sempre alguma recompensa. Uma memória longínqua, um som familiar, uma revisitação. Ora o Kronos Quartet anda a comemorar os seus imponentes 40 anos de existência, isso já se sabia, e nessa comemoração incluiu Portugal. Mais precisamente o renovado palco da Fundação Gulbenkian, num concerto integrado na temporada musical 2014-15 desta e também no vasto rol de concertos que este ano nos ofereceu o Misty Fest. Uma associação feliz, neste Novembro chuvoso.

O que nos trouxe o Kronos, nesta visita, não foi nada que não lhe tivesse sido já ouvido. Os 40 anos obrigavam a uma selecta e o grupo fê-la, a seu modo, tocando Dessner e Sigur Rós, Laurie Anderson e Wagner e concedendo generoso espaço (a fechar) ao minimalismo conceptual do Steve Reich de Different Trains, peça em três andamentos escrita para eles em 1988 e que recebeu, no ano seguinte, 1989, um Grammy destinado à melhor composição clássica contemporânea. Usando na peça palavras gravadas de entrevistados nos EUA e na Europa (em samplers electrónicos), Reich quis traçar um paralelo entre viajar de comboio na América antes da II Guerra (o que ele fez, com frequência, para visitar os seus pais que se tinham separado) e fazer idênticas viagens na Europa durante e após a II Guerra, nos terríveis anos do poder nazi, quando muitos comboios foram acessórios do Holocausto. Reich, nova-iorquino de nascimento e judeu na ascendência, criou uma obra tensa e espectral que o Kronos transmitiu com o fulgor necessário à sua (propositadamente desconfortável) assimilação.

Mas se houve trevas (e é bom lembrá-las, para que não se repitam) houve também luz. No delicioso pizzicato de Pinched, de Ryan Brown; no blues mesclado de cajun de Last kind words, da cantora de blues Geeshie Wiley, do Mississipi; ou na catarse de Café Tacba, com arranjos de Osvaldo Golijov. O mesmo Golijov que assinou para o Kronos dois belos arranjos para obras de Carlos Paredes, Canção Verdes Anos e Romance n.º 1, ambas gravadas no disco Caravan, que o Kronos Quartet editou em 2000. Pois foi a primeira destas, que tão cara é à nossa lembrança de Paredes e de um certo Portugal, que o grupo relembrou no palco da Gulbenkian, com assinalável fulgor. E com uma particularidade, que em nenhum outro concerto anterior existiu: a de ouvirmos, depois, Amália. Ou melhor, Amélia. Ou Amália na voz de Amélia, para sermos precisos. Convidada do Kronos para este concerto (único em Portugal na digressão do seu 40.º aniversário), a cantora e compositora Amélia Muge estreou em palco duas canções até aí absolutamente inéditas do seu novo disco, Amélia com Versos de Amália, que teve depois, no sábado seguinte, 15 de Novembro (o concerto do Kronos foi na terça-feira 11), lançamento de casa cheia no Museu do Fado. Com arranjos do pianista português Filipe Raposo, propositadamente feitos para esta apresentação, ouviram-se Meu coração sem direito e Eu vivo a vida perdida, dois excelentes exemplos da singularidade deste trabalho: pegar nalguns dos versos que Amália escreveu à margem do fado (editados pela Cotovia em 1997, por sugestão de Vítor Pavão dos Santos) e trazê-los para um universo musical não-fadista mas admirador do fado. Os arranjos do disco, a cargo de José Mário Branco, Michales Loukovikas e António José Martins, temperam com gosto e sabedoria a voz de Amélia e sublinham, por via dela, o que Amália nos seus versos, mesmo os aparentemente mais simples, nos deixou do seu modo de entender a vida. Amélia, que sem ser fadista começou a escrever para fadistas há vários anos (Mísia, primeira contemplada dessa aventura, estava na plateia da Gulbenkian), dedicou-se com esmero à obra que tinha em mãos e produziu um dos seus mais notáveis trabalhos.

Ora esta leitura de Amália (os versos dela na voz de alguém de nome similar mas tão diferente) surge paralela a dois outros lançamentos: o livro O Fado da Tua Voz, de Vítor Pavão dos Santos (que, em ciclópica tarefa, faz o inventário de todos os poetas que ela cantou, com os respectivos poemas), e o disco Amália no Chiado, que inclui gravações que ela fez no segundo andar da então Valentim de Carvalho, com o técnico de som Hugo Ribeiro, em 1951, muitas delas inéditas. Ou seja, sob o signo de Kronos (não o da mitologia grega, mas o quarteto universal), desaguamos num chão muito nosso: Carlos Paredes e Amália por Amélia, heranças a todos os títulos magníficas. Comemoremos.

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