Júlio Pomar, a parte do pintor que é escrita

Júlio Pomar começou a escrever sobre arte aos 16 anos e nunca deixou de o fazer. O seu Atelier-Museu e a documenta lançam agora a primeira colectânea dos seus escritos. 70 anos de pensamento sobre arte. “Queira-se ou não, faça-se o que se fizer, não se pode prescindir nunca da palavra”, diz o pintor

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Júlio Pomar Enric Vives-Rubio
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Uma das obras da exposição Tratado dos Olhos Enric Vives-Rubio
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Na exposição encontram-se vários livros sobre Bacon e Duchamp Enric Vives-Rubio

“Cada vulto que surge tem que andar sozinho desde o princípio do mundo”, escreveu Júlio Pomar na revista Seara Nova a 24 de Janeiro de 1948. Por então, falava um muito jovem pintor. Pomar tinha 22 anos. E, desde a implantação da ditadura, em 1926, a “Seara Nova” e os intelectuais que à volta dela se reuniam eram um dos grupos mais activos de oposição democrática contra o salazarismo. É este o contexto que acolhe a sua defesa ao neo-realismo, com a denúncia, a resistência e o comentário social em pano de fundo.

“A arte anuncia. E se precede as alterações da história, é porque no momento em que nasceu, soube destrinçar da realidade os elementos que a transformariam. Como órgão de conhecimento actua”, escreveu em 1945 num texto intitulado Nota Sobre a Arte Útil.

Vem deste texto o título do primeiro volume de três de Parte Escrita, a primeira compilação dos textos sobre arte que Júlio Pomar foi escrevendo ao longo de 70 anos – do primeiro, quando era ainda um adolescente de 16 anos, ao mais recente, datado de 2013.

Notas Sobre uma Arte Útil, Parte Escrita I, que o Atelier-Museu Júlio Pomar lançou quinta-feira em conjunto com a Documenta cobre os escritos entre 1942 e o momento do exílio parisense, em 1960. Ao longo dos próximos meses serão lançados Da Cegueira dos Pintores, Parte Escrita II (1985) e Temas e Variações, Parte Escrita III (1968-2013).

O lançamento do primeiro volume surge enquadrado pela inauguração – também quinta-feira – de Tratado dos Olhos, uma exposição comissariada por Paulo Pires do Vale em que se explora o universo referencial tanto da obra plástica do artista como da exploração teórica paralela a esta.

“O meu trabalho alimenta-se daquilo que despedaça”, ouve-se num pequeno filme assinado por Paulo Pires do Vale e a realizadora Catarina Mourão, a partir, também, dos textos de Pomar sobre pintura – ou, como ele diz, esse “corpo-a-corpo com o indizível” travado “na solidão como cenário”.

A solidão que existe também nos olhares das figuras que passam por este filme. Enquanto se ouve: “A pintura é áfona, não usa nem som nem palavra. Daí a afinidade com o instante da morte, na fixidez do olhar que precede a cegueira definitiva.”

A cegueira, precisamente, surge enunciada numa das primeiras pinturas da exposição com a qual se percorrem influências plásticas de Pomar. Depois de um auto-retrato de cariz pessoano – o pintor num café – surge uma das suas pinturas emblemáticas: Os Cegos de Madrid, de 1957.

Depois de um período de linguagem mais realista, em 1950 Pomar faz a sua primeira visita à capital espanhola. E o impacto da pintura de Goya faz-se sentir. Ao centro da sua tela de tons escuros de negro e castanho surge um grupo amorfo de presenças humanas – um grupo de cegos de vestes pretas apoiados uns nos outros com as suas caixas de esmola. Do conjunto, apenas os rostos se individualizam, lívidos, a branco.

A tela entrou para a colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em 1983. Quase trinta anos depois recordou-se, a seu respeito, a Parábola dos Cegos (1568), de Bruegel, baseada nas palavras de Jesus aos Fariseus: “Quando um cego guia outro, acabam por cair os dois no buraco.” À época, Pomar inverteu a perspectiva: “Fechemos os olhos para ver.”

É nesta frase que pega Sara Antónia Matos, a directora do Atelier Museu, para dizer: “Aquilo que descobrimos com os artistas, e particularmente nesta exposição, é que há muitas maneiras de olhar. Talvez não vejamos se não com aquilo que temos cá dentro e, por isso, é necessário fechar os olhos (ficando eles abertos) para conseguirmos ver as imagens do interior.”

Segundo Sara Antónia Matos, uma das coisas que aprendemos com Pomar – quer com a sua pintura quer com a sua escrita – é que “não vemos, de facto, com o que está fora”: “A sua obra requer o que é mais difícil: fechar os olhos mantendo-os abertos, para que cada um de nós veja o próprio olhar fender, a abrir, a ceder.”

Trata-se, diz, de “aprender a olhar, a ver de novo, com outra atenção”.

Na exposição, depois de Goya, surgem obras onde se revelam influências como Ucello, Ingres, Courbet, mas também, por exemplo, uma homenagem-paródia ao Quadrado Preto de Malevitch. E, numa pequena biblioteca retirada à biblioteca do pintor, encontram-se vários livros sobre Bacon e Duchamp – a cuja obra Pomar dedicou também escritos.

Trata-se, diz Paulo Pires do Vale, de “focar uma parte do Júlio desconhecida”: “Ninguém, mesmo do meio [das artes plásticas] tem noção que o Júlio tem este manancial reflexivo [explicitado nos escritos].” 

Com Pedro Faro, seu assistente no museu, Sara Antónia Matos fez a pesquisa para os três volumes de Parte Escrita. Trabalharam sobretudo arquivos, mas também um conjunto de textos inéditos que o artista escreveu no período de Paris.

“Os textos críticos que produziu, o pensamento que neles materializa, certificam o autor não apenas como artista mas também como um sujeito da escrita e um agente profundamente inquieto que não evita tomar posições”, diz Sara Matos. “O pintor tem consciência de que a escrita não deve ser inócua. A importância de Pomar ao nível analítico, assertividade com que disseca os contextos de produção, preparando os de recepção constituem alicerces para contextualizar a sua obra e compreender a actividade dos artistas no contexto português e internacional.”

Em 1945, a propósito de uma Exposição de arte moderna, Pomar escreveu sobre vários dos seus pares para o suplemento Das Artes/Das Letras, do A Tarde – uma escrita crítica implicada, acutilante, por vezes impiedosa. Sobre Dordio e Camarinha: “Ambos lograram uma forma inconfundível, Dordio inscrevendo um colorido não isento de sensualidade num arabesco fortemente acusado, um pouco à maneira fauve, Camarinha limitando a paleta aos cinzentos e aos castanhos, apenas introduzindo certo vermelho rompu, para livremente se entregar a puros jogos de caligrafia.” É menos benevolente sobre outros. António Lino, por exemplo: “Expande uma louvável inquietação […] gostaríamos, contudo, de encontrar o uso menor de recursos de efeito fácil, como certas iluminaçõezinhas sistemáticas a insinuar o drama que, plasticamente resolvido, atingiria maior poder emotivo.”

Ou Nadir: “Nadir é digno da maior atenção não só do público — mas dele próprio. Lírico instintivo, a sua visão inscreve a realidade num ritmo dinâmico, dramatizado sempre. Depois das três belas paisagens que enviou a Lisboa, será lícito pedir outra coisa que a Mulher deitada pintada talvez somente para épater le bourgeois, atitude pouco útil em quem muito tem a dizer.” E é demolidor, por vezes: “A. Sampaio e A. Gomes não nos conseguem emocionar na sua pintura formalmente pobre e sem visível conteúdo humano.”

É a faceta mais crítica dos seus escritos. No volume II da Parte Escrita Da Cegueira dos Pintores , explica Sara Antónia Matos, surgirão textos mais especulativos, em que Pomar coloca a pintura a par do pensamento filosófico.

“Parte escrita” é a expressão que o próprio Pomar usa para se referir aos seus textos, indicando vê-la como aspecto integrante da sua obra, nem mais nem menos importante do que a pintura. Esse tipo de pensamento surge, no entanto, já em alguns dos textos deste primeiro volume. Por exemplo, quando fala sobre pintura enquanto linguagem: “Simplesmente, ninguém será entendido se a sua linguagem não for clara — balbuciante ou prolixa”, escreve Pomar.

“O bom orador construirá o seu discurso tendo em vista a atenção do auditório e os seus limites. Saberá dispor o peso das afirmações de modo que, pela proximidade ou afastamento destas, seja facilitada a compreensão; graduará, no sentido do seu máximo aproveitamento, o interesse do público. Do mesmo modo o pintor, que substituiu apenas as palavras por formas, tem a obrigação de saber disciplinar o seu discurso — o quadro […]. Nada mais triste para o espectador do que salvar do quadro apenas a intenção. Nada levantando mais confusão no público do que as verdades ditas em desordem. Não falando já daquelas em que somente a epiderme foi aflorada.”

Pomar diz não ter relido qualquer dos seus textos para estas publicações. “A vontade de voltar a ler poderá vir da necessidade de substituir uns pontos de vista por outros. Não sei se não seria dar excessiva importância ao resultado de condições muito objectivas de Portugal que estão longe das actuais.”

O pintor foca aqui sobretudo os seus textos sobre o neo-realismo – aquilo que define como “uma necessidade de acção”. Esse era o seu período de juventude, período em que diz que a sua escrita era “quase prematura” e onde diz que “há, evidentemente, uma noção de certeza que só é possível numa extrema juventude, de vontade de participar na parada do mundo”.

“Depois”, diz, “é possível uma outra maneira de ver, de nos aproximarmos da coisa.”

Pomar não deixou nunca, porém, de escrever. “Queira-se ou não, faça-se o que se fizer, não se pode prescindir nunca da palavra, que é sempre a tentativa de tocar o ponto. O pintor dá muita importância ao visto, a uma catarse sobre o espectáculo da comunicação, mas não pode prescindir da palavra.”

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