Júlio Pereira entre as mulheres

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Júlio Pereira agora autor de canções António Gamito

Dez canções, dez cantoras, doze desenhos. Júlio Pereira criou, com Tiago Torres da Silva e Tiago Taron, um objecto único na sua carreira. Recebe hoje o prémio de Disco do Ano

Nos últimos anos, depois de gravar muitos discos onde deu largas às suas capacidades de multi-instrumentista, Júlio Pereira tem andado a experimentar coisas que nunca fizera. Em 2002 fez um disco adulto com dez canções para crianças, "Faz de Conta" (onde até cantou, coisa que detesta). Em 2007, em "Geografias", compôs à frente de outros músicos, chegou-se ao Oriente e aos "States" e uniu o bandolim à guitarra portuguesa. E agora, em 2010, lançou um disco de canções criado a seis mãos e dez vozes. As mãos foram as dele, que compôs as músicas; as de Tiago Torres da Silva, que escreveu as letras; e as de Tiago Taron, que pintou um desenho para cada canção mais outros para a capa e para a bolacha. E as dez vozes foram todas elas de mulheres. Seguindo a ordem do disco: Sara Tavares, Dulce Pontes, Olga Cerpa (uma das mais importantes cantoras das ilhas Canárias), Marisa Liz (ex-Marisa Pinto, antiga vocalista dos Donna Maria), Nancy Vieira, Manuela Azevedo (dos Clã), Maria João, Sofia Vitória (que ultimamente canta nos concertos de Júlio Pereira), Filipa Pais e Luanda Cozetti (dos Couple Coffee).

O que o levou a este último projecto? Uma ideia impraticável: fazer seis singles, cada um com duas canções. Não fez seis, fez um. Que saiu em Janeiro, já como cartão de visita do disco que havia de sair mais tarde. Tinha as canções gravadas com Maria João e Luanda Cozetti, ostentava o título "Graffiti" e foi uma boa aposta, a julgar pelas vendas.

Mas o "Graffiti" de dez canções ainda teve melhor sorte. Vai ser agora editado em Espanha, com uma canção extra ("El ultimo tren", com a voz de Olga Cerpa; até ao Natal estará à venda em Portugal idêntica edição) e recebeu entretanto a distinção de "Melhor Disco do Ano", atribuída pelo Orfeão de Leiria Conservatório de Artes, na 18ª edição da entrega dos "Troféus Pedrada no Charco". O prémio, que já foi atribuído a cantores como Carlos do Carmo, José Mário Branco, Sérgio Godinho, David Fonseca ou Rita Redshoes, entre outros, vai ser entregue hoje, numa cerimónia em Fátima.

Atracção pela pintura

No disco lê-se esta frase de João Luis Oliva: "Parte desta história diz que olhamos os graffiti(s). Outra, que os ouvimos. Mas a verdade é que eles nos observam." Júlio Pereira acha que a frase encerra o espírito do disco e da melhor maneira. "Eu sei que toda a gente procura pretextos para justificar os seus trabalhos, mas neste caso foi mesmo uma coisa a três, com o Tiago Torres da Silva e o Tiago Taron, desde o princípio. Três Capricórnios, três cabeças a pensar. Aliás é sem querer que o Tiago Taron me dá a sugestão para o título. Quando ele me falou em 'Graffiti', achei logo que era o título para o disco. Ele não queria, ficou hesitante, mas depois foi aderindo."

Tiago Taron, autor dos desenhos que integram o disco, cruzou-se com Júlio Pereira pela primeira vez em 1984. "Foi em Moscovo, num daqueles festivais da juventude. Depois comecei a encontrá-lo no Bairro Alto, ele anda sempre com um caderninho pequenino a fazer desenhos, uma espécie de cigarreira que se abre e tem as tintas todas, com um pincel minúsculo. E passa a vida nisso." Disse-lhe: "Um dia ainda vais fazer a capa de um disco meu. E fez mesmo."

Não é a primeira vez que Júlio Pereira trabalha com desenho ou pintura nos seus discos. O disco da sua estreia a solo, "Fernandinho Vai ao Vinho" (1976), tinha desenhos de Carlos Zíngaro e "Janelas Verdes" (1990) foi inspirado em pintores portugueses: "Nunca li tanto sobre pintura, nunca vi tanta exposição, nunca conheci tantos pintores..."

Vozes familiares

As canções foram nascendo num ciclo criativo lento mas aplicado. "O Tiago [Torres da Silva] gosta de escrever só ouvindo o som da música, o que para mim foi bom porque eu cantarolava cada canção e foi assim que lhe mandei os MP3. Ouvíamos cada tema aqui em casa e falávamos sobre ele, até porque há intensidades de escrita musical que depreendem um discurso: aqui há uma interrogação, ali uma satisfação, aqui um grito..." À medida que surgiam os nomes das cantoras para cada canção, o processo repetia-se. E cada uma recebia um MP3 com o tema cantarolado por ele (no disco, a voz de Júlio Pereira ficou apenas na faixa gravada com Maria João).

A escolha das vozes surgiu sempre baseada num conhecimento prévio. "Temos uma memória daquilo que as pessoas são. Quando vou buscar estas vozes já sei minimamente o resultado, porque as conheço." Mas, na verdade, é sobretudo um disco dele, onde as vozes, diferentes, aceitaram um denominador comum. Porque "todos os discos têm uma produção, um conceito, e quem o dá é o seu autor." O resultado, no entanto, foi gratificante. "Toda a gente saiu daqui satisfeita", diz o músico e compositor, referindo-se agora ao estúdio que é também a sua casa. Além de Júlio Pereira (guitarras, bandolim, sintetizadores e coros) e das dez cantoras, o disco conta ainda com Miguel Veras (guitarras), Laurent Filipe (trompete numa das faixas) e Quico Serrano (sintetizador Moog). O resultado está nas lojas e, claro, na Net, que tem em Júlio Pereira um fã incondicional.

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