Jorge Silva Melo, como se fosse um auto-retrato

Ainda não Acabámos, Como se Fosse uma Carta é o filme em que Jorge Silva Melo se põe a si mesmo no centro da acção. Como se fosse um auto-retrato, mais triste do que alegre, depois de vários anos e de vários filmes a fazer retratos de outros artistas.

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ADRIANO MIRANDA

Ainda não Acabámos, Como se Fosse uma Carta é o filme em que Jorge Silva Melo se põe a si mesmo no centro da acção. Como se fosse uma carta, ou como se fosse um auto-retrato, depois de vários anos e de vários filmes a fazer retratos de outros artistas, de Álvaro Lapa a Nikias Skapinakis. É um filme sobre Silva Melo agora, mas também sobre as memórias que transporta, e sobre o que ele tem para deixar, sobre um legado. O leitmotiv da estrutura do filme evidencia-o, encenando uma conversa entre o autor, realizador, encenador, e o actor João Pedro Mamede, o mais jovem membro da companhia Artistas Unidos, que Silva Melo fundou e dirige.

O que não impede que seja um filme libérrimo, cheio de diversões e divagações, construído também aqui, “como se fosse uma carta”. Fala de muita coisa: de Lisboa, do cinema, de amigos e companheiros desaparecidos. A impressão de perda assombra o filme, e quando no final ouvimos Silva Melo falar sobre “a alegria como algo que se conquista como se fosse uma cura” é impossível deixar de voltar à sequência inicial, às imagens da Lisboa Cidade Triste e Alegre dos anos 50 como impressa no livro de Victor Palla e Costa Martins, Lisboa que também é a da infância de Silva Melo. Tristeza e alegria são os polos entre os quais circula todo o filme.

Mais triste do que alegre

“Mais triste do que alegre”, diz Silva Melo ao  Ípsilon. “Eu não queria que o filme me saísse tão triste, conscientemente não sou pessimista, mas inconscientemente devo ser porque o filme saiu assim, e eu próprio fiquei espantado com tanta melancolia e indolência. Sou um bocado mais aguerrido e combativo”. Mas é um tema, a alegria, se não a sua impossibilidade a sua dificuldade, que percorre todo o filme: “Provavelmente pelas minhas origens católicas a alegria é um tema que sempre me interessou. Se faço um espectáculo também é por causa das palmas no final: a alegria que mesmo um espectáculo deprimente provoca nas pessoas. Vivermos para celebrar em conjunto a alegria é um tema que por certo me marcou. Também vem dos meus pais, certamente, que pretendiam que a alegria fosse um estímulo, uma conquista e um destino. Era isto que queria ter passado às pessoas mais novas. Mas acho que o filme é tristíssimo, falhei”.

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O tema do legado é um eixo do filme. É o que justifica a sua estrutura “em conversa”, tanto quanto é justificado pela vontade de materializar o legado num objecto que se “passe” a outras mãos

Mas há naquele discurso perto do fim uma associação bastante clara entre a alegria e o trabalho artístico, como algo em continuidade, passo a passo, uma construção que, como diz o título, ainda não acabámos: “Isso vem dum texto do Gilles Aillaud sobre a Sofia Areal, a ideia de que a alegria se encontra como numa cura, numa convalescença. E que cada passo, cada gesto artístico, é como uma conquista contra a neura, contra o cinzentismo, contra a morte”.

“Tantos mortos que já temos”, diz a voz off de Silva Melo no final, sobre excertos e fotografias das muitas peças encenadas com os Artistas Unidos, lembrando actores desaparecidos como Paulo Claro ou Teresa Roby. A tristeza do desaparecimento e dos desaparecidos impõe-se, como se impõe um não-reconhecimento permanente no espaço em volta. Em certo sentido, Ainda Não Acabámos também é um filme sobre Lisboa, mas uma Lisboa desaparecida, onde velhos cafés, snack-bars e espaços de encontro só aparecem enquanto fotografia a preto e branco ou, em imagens de agora, em ruinas.

“Tenho enorme dificuldade em encontrar-me na Lisboa de agora”, diz. “Filmar a Lisboa de que não gosto? Seria filmar uma felicidade que não é a minha. Não gosto da Ribeira das Naus, mas a Ribeira das Naus está cheia de pessoas contentes. Não vou filmar turistas, pessoas contentes e com o direito de estarem contentes. É um sentimento interior de não-pertença. Não encontrar os meus amigos, os meus lugares de convívio”. A Lisboa que interessa, ou interessava, a Silva Melo, é muito precisa: “é a Lisboa nova, a dos anos 50, que vi crescer. Interessa-me pouco a Lisboa do século XIX, mas os prédios do Conceição Silva ou do Teotónio Pereira que estão a desfazer-se, isso faz-me dor. A Lisboa que eu vi nascer já não existe? É uma dor recente – eu pensava que esta é que ia a ser a Lisboa maior. Em velharias não estava nada interessado”. Um dos poucos planos da Lisboa contemporânea, um travelling de automóvel pela Avenida da Liberdade acima, até foi descolorido, “para parecer mais antigo”.

Passar um legado

O tema da passagem, do legado, é outro eixo do filme. É isso que justifica a sua estrutura “em conversa”, tanto quanto é justificado pela vontade de materializar o legado num objecto que se “passe” a outras mãos. “Há uns anos comecei a livrar-me de tralha que tenho em casa, a dar livros, e isso é um acto que de certa maneira também corresponde a este filme”. Arrumar a casa. Mas arrumar a casa também é pôr um arquivo em ordem, e o filme constitui-se num pequeno arquivo audiovisual de objectos (fotos, pinturas, livros, filmes e cartazes de filmes) caros às memórias e ao sentimentos do autor. Que inicialmente tinha pensado “não aparecer no filme”, deixar que fossem as imagens, os objectos, os outros, a traçar o seu auto-retrato: “E comecei com as entrevistas, ao Jean Jourdheil, ao Spiro Scimone. E a certa altura achei que ficava um filme ridículo – só estava a dizer que encontrei muita gente famosa e que levei uma vida de privilegiado E então passei ao João Pedro Mamede, o mais jovem actor da companhia, e pegando na carta que o José Medeiros Ferreira escreveu em 1968 quando desertou”, carta que é abundantemente evocada no filme. “Mas ele tinha uma mensagem de esperança nessa carta que eu agora não tenho – e isso é que é a estupidez”.

Logo a seguir às imagens da Lisboa triste e alegre seguem-se evocações de filmes e cinemas que Silva Melo viu e frequentou na adolescência. O Rio Bravo de Hawks (“o mais belo filme do mundo”), O Sargento Negro de Ford”, o Picnic de Joshua Logan, entre vários outros. Formular assim a pergunta é um cliché, mas perguntamos, pensando no último suspiro do cidadão Kane, se o cinema – esse cinema – é o “rosebud” de Jorge Silva Melo: “É, é o’rosebud’. A infância e a adolescência de qualquer jovem intelectual era o cinema. O cinema dava tudo o que não víamos na rua. As pessoas eram maior do que a vida... A emoção de saber que no sábado que vinha ia ver o filme tal, isso é o ‘rosebud’ absoluto de uma vida”. Mas é, sobretudo, nostalgia de um cinema popular, para todos, como depois dificilmente voltou a haver: “era para todos mas nem todos iam: o Some Came Running vi-o no São Luiz numa sala vazia. Era um cinema que já estava a morrer – aliás digo isso no filme, o Gary Cooper estava velho, o John Wayne já precisava de óculos. Os cowboys estavam a morrer”.

Mas nesse segmento também se fala de uma educação, ali diz Silva Melo que foi a ver Rio Bravo que aprendeu o que era a humilhação, que foi a ver John Ford que aprendeu o que era a justiça e a honra. É sobretudo esse tempo em que o cinema era uma forma de educação que o filme evoca: “completamente, era uma educação sentimental e era uma educação política. Dou um exemplo: fui expulso dos Maristas por ter feito uma redacção de homenagem ao Patrice Lumumba. Muito estúpido, fiz uma comparação entre o Lumumba assassinado e os mártires católicos. Puseram-me na rua, fui suspenso três dias.  O meu pai, republicano, achou muito bem que eu tivesse escrito a redacção e deu-me bilhetes para o cinema para e eu ocupar esses três dias. E o primeiro filme que fui ver foi o Quo Vadis [1951, Melvin Le Roy]. Portanto, aos 11 anos, o Nero e o Salazar tornaram-se a mesma pessoa. Politicamente era a grande  mensagem americana, a mensagem do anti-nazismo americano. Foi o que me formou”.

Mas ainda não acabámos. “Isso é uma frase do João Gonçalves no livro de homenagem ao Medeiros Ferreira. A ideia de que o nosso gesto pode continuar para além de nós, que há uma conversa que não acaba com a nossa extinção, comove-me. Gosto destas frases banais. É a poesia mais bonita, uma frase banal ser injectada de vida. O [Harold] Pinter era um mestre disso”. E este é um filme sobre o gesto que continua para além de nós.

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