Jessy Lanza, do casulo para a luz

Jessy Lanza achou que era altura de se mostrar. Em Oh No a sua electrónica perde a timidez e ganha limpidez pop. Música híbrida, onde cabem Haruomo Hosono ou os 10cc. Música que representa a identidade do Lisboa Dance Festival que a acolherá esta sexta-feira.

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Depois de, em 2016, se ter apresentado ao vivo acompanhada de um baterista, decidiu enfrentar o palco sozinha. É reflexo do seu trabalho com Caribou, de cuja formação de palco fez parte

Jessy Lanza estava deprimida e a sua única vontade era enroscar-se na cama e não fazer nada de nada. A canadiana Jessy Lanza, revelada em 2013 com Pull My Hair Back, álbum de voz como nuvem esvoaçante e farrapos r&b cuidadosamente reconfigurados em música etérea e reflectiva, sentia-se deprimida depois de tudo lhe ter corrido muito bem. Falamos da recepção pública e crítica do álbum ou da possibilidade que esta lhe trouxe de assumir a carreira como ocupação principal (e lá se foram as aulas de música que, outrora, lhe pagavam as contas). Jessy Lanza descobriu o antídoto e Oh No, o álbum que editou o ano passado, é o resultado. “Ir para o estúdio compor e confrontar a depressão e todos os sentimentos negativos associados, ajudou-me a agir da forma oposta ao que sentia no meu íntimo”, explica

Quando esta sexta-feira, às 21h20, a virmos entrar no palco da sala XL, na LX Factory, em Lisboa, como um dos nomes mais aguardados do segundo Lisboa Dance Festival, não pensaremos numa mulher deprimida sem vontade de sair da cama. Pelo contrário. Oh No, tal como o seu antecessor gravado a meias com o colaborador e companheiro Jeremy Greenspan, dos Junior Boys, e editado pela Hyperdub, fundada por Kode 9, é o álbum de uma antiga estudante de jazz (o piano e o clarinete como especialidade), apaixonada pela música electrónica japonesa, pelo soft-rock americano dos anos 1970 e pela descoberta de novos sons em velhos sintetizadores. É o álbum de uma mulher de 31 anos, “tímida e introvertida”, que, depois do embate com as pressões e expectativas de ser uma música profissional celebrada por um álbum marcante na edição discográfica de 2013, decidiu que esconder-se não seria resposta para nada.

Com Oh No, chegou a hora de se expor: a sua voz ouve-se com nitidez sobre a produção, que se aproxima por vezes do lado mais lúdico do electro do final dos anos 1970 ou da pop e funk sintéticos de Prince ou Sade – ou a sua versão personalizada disso, como aprendeu com mestres japoneses como Haruomi Hosono ou a cantora Mirahu Hokoshi. “Já seguia a Yellow Magic Orchestra [banda japonesa fundada no final dos anos 1970 por Ryuichi Sakamoto, Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi] há muito, mas entretanto mergulhei a sério no trabalho de Haruomi Hasono e, principalmente, no de uma cantora, Mirahu Hokoshi, para quem ele fez muita produção”. Atraiu-a a forma como Hosono “dá o seu próprio twist a música com origem muito específica, como em Pacific, “álbum sobre as ilhas da zona que é como que música lounge para meditação”. Atraiu-a, em Mirahu Koshi, a capacidade de pôr a sua personalidade numa estética distante. “Os seus discos são uma versão, por exemplo, dos New Romantics e da música com sintetizadores da new-wave, mas há sempre algo estranho e diferente na sua abordagem”. A identificação foi imediata. “Senti-me próxima dela porque sempre adorei música pop, mas não sou boa dançarina e não sou particularmente carismática, pelo menos como uma Mariah Carey tem que ser”, confessa. “Nunca senti que encaixasse. Quando faço a minha música, ela é sempre a minha interpretação do que é a música pop”.

Neste jogo entre o lúdico e o experimental, neste cruzamento de géneros a partir de um centro definido – a música de raiz electrónica -, Jessy Lanza encaixa na perfeição na identidade do Lisboa Dance Festival, que receberá o disco-house dos celebrados Hercules & Love Affair (sábado, 22h30), a dupla britânica Mount Kimbie, inspirada reconstrutora da canção no mundo pós-dubstep (sábado, 21h20), TOKiMONSTA, colaboradora de Anderson Paak, hábil no cruzamento entre a electrónica e o hip hop (sexta, 22h30), ou George Fitzgerald, o autor de Finding Love que subirá a palco Sábado, às 2h.

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Destaquem-se ainda as sessão com curadoria de Moullinex (sexta) e Branko (sábado), a presença de Batida, que transformará a livraria Ler Devagar num espaço aberto à música e à dança (sexta, 0h30), ou de nomes em destaque no hip hop nacional como Holly Hood (sexta, 20h30) e Conjunto Corona (sábado, 21h15). Karla Campos, da organização do festival, afirmou quando da apresentação do mesmo que, depois de um ano de estreia em que o techno e a house estiveram em destaque, “este ano a aposta é ir mais longe e abranger uma visão 360º da música electrónica”. Algo assegurado com a presença em cartaz, por exemplo, de Rui Maia (sábado, 0h15) e dos Holy Nothing (sábado, 22h45), da electrónica introspectiva de Lince (sábado, 20h) ou do legado de Suicide ou Spacemen 3 revitalizado pelos Ghost Hunt (sexta, 20h).

O casulo criativo de Hamilton

O ano passado os velhos edifícios reconvertidos, as salas novas criadas em espaços com muita história, ganharam uma agitação peculiar em Março. Ali, na Lx Factory, realizou-se o primeiro Lisboa Dance Festival, acontecimento que pretende ser espaço de fruição e pensamento, de testemunho e de aprendizagem. Este ano, o festival regressa e, como é obrigatório numa segunda edição, com novas ideias e novos espaços.

Esta sexta-feira e sábado, o Lisboa Dance Festival terá portas abertas na supracitada Ler Devagar, base do Clube Antena 3, ou no Hostel Dorm, que acolherá as sessões de DJ B2B (Stereossauro e DJ Kwan; Sam The Kid e DJ Big; Riot e Nuno Forte; Rita Maia e Dj Satellite). Ao todo, serão seis espaços abertos ao festival. Ouvir-se-á música e debater-se-á música, com conferências, coordenadas pelo jornalista Rui Miguel Abreu, sobre temas como o papel das mulheres no contexto da música electrónica ou a existência de Lisboa, hoje, como um dos centros criativos desse universo. Dançar-se-á música a ir-se-á aprender sobre música, com masterclasses dedicadas ao DJing, masterização e sampling. Será entre tudo isto que aterrará Jessy Lanza, mulher pouco dada a agitação.

Lanza vive ainda na pacata cidade canadiana de Hamilton. Fá-lo porque gosta de ter a família por perto. Fá-lo porque, sempre que pensa em mudar-se para uma cidade maior, lembra a si mesmo como tudo é tão mais barato na sua pequena localidade. “É difícil seres criativo quando estás preocupada com dinheiro. Além disso, distraio-me facilmente. Estando numa cidade calma como esta, consigo concentrar-me no trabalho”.

É nesse casulo criativo que nasce a música que ouvimos em Oh No. No estúdio dividido com Jeremy Greenspan, acumulam-se os sintetizadores que foram comprando através de listas de classificados. “Foi assim que eu e o Jeremy recheámos os estúdios, reunindo material que outras pessoas não queriam” – em Oh No, Lanza virou-se para “sintetizadores do final dos anos 1980, inícios de 1990, com um som muito límpido, com óptimo reverb, com muita claridade”. Naquele estúdio, foi nascendo música em que o trabalho “muito baseado no sampling” se sintoniza com uma sensibilidade à flor da pele. “Sou definitivamente uma pessoa muito emotiva e isso tem que passar na música”, destaca. “Ao mesmo tempo, tanto eu como o Jeremy adoramos os cantautores e o soft-rock dos anos 1970. Carole King, Loggins And Messina, os 10cc, música farsola desse tipo, com um lado confessional que me inspira”.

Terminado o recolhimento criativo, escondida no seu casulo em Hamilton, é agora tempo de se mostrar. Depois de, em 2016, se ter apresentado ao vivo acompanhada de um baterista, decidiu enfrentar o palco sozinha. Diz-nos que é reflexo do seu trabalho com Caribou, de cuja formação de palco fez parte e com quem colaborou no álbum Our Love. “Percebi que a música electrónica não precisa de tentar ser algo que não é. Ninguém consegue fazer melhor que ele a mistura entre o electrónico e o acústico. Se queres fazê-lo, não há meio-termo, tem que ser como eles o fazem, com o baixista, com os dois bateristas. eu percebi que não tenho que me disfarçar quando faço as minhas coisas. Os sons levar-me-ão a quem ouve”. “Oh yes!” para o Oh No que está a chegar.

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