Já não sei o que sou, diz a ópera

Beaumarchais é uma quase-ópera que nos interpela, apesar do caos aparente, e nos convida para um meta-teatro que faz da música sua profana companheira.

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Beaumarchais Filipe Ferreira
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Beaumarchais Filipe Ferreira

“Olha que isto não é uma ópera”, avisava alguém no foyer do Teatro D. Maria II. Já estávamos de sobreaviso...  O compositor Pedro Amaral chamou-lhe “um espectáculo de teatro com partes de ópera”. Mas na verdade este Beaumarchais é bem mais difícil de definir. Em primeiro lugar porque o próprio projecto do encenador Jorge Andrade e da companhia teatral Mala Voadora tem a ver com desencaixar. O autor clássico e as suas peças As bodas de Fígaro, O barbeiro de Sevilha e A mãe culpada são aqui alvo de um trabalho prévio de eliminação de etiqueta, de reescrita e de filtragem. Beaumarchais aparece mesmo em palco, fresco para assar: como um provocador atrevido servindo cervejas aos cantores e aos actores. Os cantores bebem minis enquanto cantam (sacrilégio!), os actores falam por cima da música, tudo ali se desmonta e dessacraliza, logo desde o início, em que uma suposta trompista da Orquestra Gulbenkian (na verdade uma actriz) inicia a comédia. Cortes explicativos, piscares de olho, graças com mais ou menos graça (algumas com menos), pouco importa. Está desfeita a atitude de devoção habitual das salas de ópera ou de concerto.

Mas se fosse só isso, seria simples e podia não ir mais longe. Neste Beaumarchais, para além de uma acumulação (desmontada e colada) de referências históricas, musicais e teatrais, há um outro processo em curso: trata-se de uma operação de deslocamento permanente. O lugar das coisas e o sentido da acção torna-se instável. As intenções de palavras, música e gesto, cruzam-se e confundem-se. Os cantores (que na estreia foram os do 1º elenco) não representam as personagens de Beaumarchais, mas fazem de cantores num estúdio de gravação. Actores fazem de técnicos de som desse estúdio. E ao mesmo tempo são actores, perturbando e insuflando caos na ordem musical definida pelo compositor Pedro Amaral.

Lá atrás, chegada à esquerda do palco, está a Orquestra Gulbenkian, que fica meia escondida. Problema difícil de resolver com uma orquestra tão grande em palco. O lugar parece secundarizá-la, mas a encenação procurou compensar esta dificuldade com interessantes soluções: os actores perturbam a música, mas também a trazem para a frente e a sublinham, em gestos contraditórios. Os actores são ali “técnicos de som”, e a escuta ganha, apesar de tudo, primazia. A comédia de enganos, duplicada, triplicada e desdobrada, potencia ainda toda esta enorme confusão. Mas de repente tudo faz sentido, e o que se foi desarrumando ganha um corpo comum numa reflexão humanista sobre o teatro.

Entre a perturbação da escuta e o “deixar ouvir”, entre a recusa da música e o seu intenso desejo (Mozart! Cherubino!), entre a quebra do teatro e a sua sucessiva reconstrução, Beaumarchais é uma quase-ópera que nos interpela, apesar do caos aparente, e nos convida para um meta-teatro que faz da música sua profana companheira.  A música de Pedro Amaral, coerente e até respeitosa de uma certa tradição, com uma escrita orquestral complexa e por vezes empolgante, procura vocalmente soluções simples para problemas complicados. E resolve-os quase sempre bem, no meio de tantos equívocos. Equívocos? Desencontros? Incoerências? Leituras distantes das ideias dos textos de Beaumarchais pelo teatro e pela composição musical? Também os há. Mas, surpresa das surpresas, tudo se conjuga numa estranha unidade. À “carta da desgraça” procura dar-se um sentido político actual discutível (é preciso descer bem fundo e tudo fazer perigar para tudo se salvar no último momento). Ali, contudo, a música de Pedro Amaral transporta ainda uma bela desesperada esperança. Um piano solo (tocado por Joana Gama) muda a música de cores e faz dos últimos momentos do espectáculo uma pausa para reflectir. Que pode vir ainda?

Um excelente número vocal, subitamente, leva as comédias escaqueiradas todas para outro lugar, onde se pode pensar ainda uma comunidade possível. Nesse momento,  “técnicos” e “artistas”, actores e cantores, juntam-se num coro final que resgata a possibilidade de uma união, apesar das classes e das lutas sociais, apesar dos cinismos e das hipocrisias aristocráticas, apesar dos tiques, das hierarquias, dos desrespeitos dos artistas uns pelos outros e de outras maldades. Salva-se o teatro e os seus trabalhadores, actores, técnicos, cantores, músicos. E o número corre bem. E todos se abraçam no estúdio de gravação.

Tudo afinal se partiu para tudo se juntar, como nas comédias burguesas de Beaumarchais, como em Mozart. Com uma nova liberdade, à espreita.

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