Irmãos Coen inauguram um Festival de Berlim aberto aos desafios

Meryl Streep preside ao júri de uma edição que corre mais riscos e abre mais portas. E em que se agiganta, fortíssima, a presença portuguesa.

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Salve, César!, filme de abertura
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A Lullaby to the Sorrowful Mystery, de Lav Dias, sobre a revolução filipina contra o poder colonial no século XIX, é uma experiência de endurance com oito horas de duração
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Chi-raq, recriação da Lisístrata de Aristófanes nos territórios de gangues de Chicago: Spike Lee

A edição 2016 do Festival de Berlim começa esta quinta-feira e prolonga-se até dia 21. Traz a maior representação portuguesa de sempre, com oito filmes ao todo, três deles nos concursos principais (a longa Cartas da Guerra, de Ivo Ferreira, e as curtas Freud und Friends, de Gabriel Abrantes, e Balada de um Batráquio, de Leonor Teles), quatro deles em estreia mundial (com destaque para Eldorado XXI, de Salomé Lamas, e Posto Avançado do Progresso, de Hugo Vieira da Silva).

Mas essa fortíssima presença nem é o dado mais singular da 66.ª Berlinale, que arranca com a nova comédia dos manos Coen, Salve, César!, uma história da Hollywood dos anos 1950 com Josh Brolin, George Clooney, Scarlett Johansson ou Ralph Fiennes. É-o, sobretudo, a sensação de que o certame alemão está a reclamar (com algum sucesso) uma relevância que lhe pareceu escapar em anos mais recentes, aproveitando a contestação a um Festival de Cannes que parece cada vez mais porta-voz da “internacional ortodoxa” do cinema de autor e a “crise” que a saída de Marco Müller instalou em Veneza.

Basta ver o “risco” maior desta edição: convocar o filipino Lav Diaz, actual porta-estandarte do “autorismo” mais radical e intransigente, para a competição principal. Depois das quatro horas de Norte – The End of History, prémio Un Certain Regard em Cannes 2013, e das quase seis de From What Is Before, Leopardo de Ouro em Locarno 2014, o novo A Lullaby to the Sorrowful Mystery (sobre a revolução filipina contra o poder colonial no século XIX) é uma experiência de endurance com oito horas de duração. O tipo de desafio ao espectador que Berlim costuma programar no Forum, a mais prestigiada das secções paralelas, e que, por exemplo, mostra este ano as 11 horas (repartidas por várias sessões) de Chamisso's Shadow, da artista multimedia alemã Ulrike Ottinger. E também um desafio ao júri presidido por Meryl Streep, completado pela realizadora Malgorzata Szumowska, pela fotógrafa Brigitte Lacombe, pela actriz Alba Rohrwacher, pelos actores Clive Owen e Lars Eidinger e pelo crítico Nick James.

O concurso 2016 parece assim querer evitar as armadilhas que têm levantado dúvidas sobre a utilidade da competição principal de Berlim para a renovação do circuito de festivais. Para lá de Lav Diaz, há autores mais jovens ou “estreantes” em secções competitivas de classe A: a francesa Mia Hansen-Løve (L'avenir, com Isabelle Huppert), o tunisino Mohammed Ben Attia (primeiro filme, Hedi), o polaco Tomasz Wasilewski (United States of Love, histórias de mulheres nos anos do Solidariedade), o iraniano Mani Haghighi (A Dragon Arrives, passado no Irão do Xá) ou o americano Jeff Nichols (Midnight Special).

Continua a haver, claro, habitués da Berlinale, cineastas que parece já terem “lugar cativo” – este ano, Rafi Pitts, iraniano radicado na Alemanha, e o veterano francês André Téchiné (seis presenças em Cannes e uma em Veneza) surgem ambos pela terceira vez no concurso principal. Mas entre os “repetentes” tanto estão o bósnio Danis Tanovic (dois prémios em 2013 com An Episode in the Life of an Iron Picker, mostra este ano Death in Sarajevo, baseado na peça de Bernard-Henri Lévy Hotel Europe) como o canadiano Denis Côté, um dos nomes em ascensão no circuito dos autores (sucede a Vic e Flo Viram um Urso, premiado em 2013, com Boris sans Béatrice). 

E, na melhor tradição berlinense de cinema “interveniente”, há dois documentários sobre temas “do momento”: Fuocoammare, do italiano Gianfranco Rosi (Leão de Ouro em Veneza por Sacro GRA, sobre Lampedusa, ilha-centro no debate da emigração), e Zero Days, do prolífero americano Alex Gibney (sobre o Stuxnet, o vírus informático que sabotou o programa nuclear iraniano).

Qualquer coisa a mudar

Mas o que “não está” é, claro, tão significativo como o que “está”. Para um certame que sempre apostou forte na “prata da casa”, a presença alemã no concurso, fora co-produções, está reduzida a 24 Weeks, segunda longa de Anne Zohra Berrached. E as produções internacionais de prestígio que descaracterizaram muito a secção competitiva ao longo da última década resumem-se este ano a duas histórias verídicas: Genius, primeira realização do encenador Michael Grandage, com Colin Firth e Jude Law, sobre a relação entre o editor Max Perkins e o escritor Thomas Wolfe; e Alone in Berlin, rodado na Alemanha pelo francês Vincent Pérez, com Emma Thompson e Brendan Gleeson no papel de um casal activista anti-nazi durante a Segunda Guerra Mundial. 

A América Latina ficou-se pelas secções paralelas; os nomes mais fortes são este ano a brasileira Anna Muylaert (Que Horas Ela Volta?), que mostra no Panorama Mãe Há Só Uma, e o chileno Alejandro Almendras (vencedor do Indie há dois anos com Matar a un Hombre), que traz Aqui no ha pasado nada. Da China, uma das presenças mais regulares ao longo da última década, só Crosscurrent, de Yang Chao, passou o “crivo” do concurso principal.

Os nomes de peso na passadeira vermelha aparecem fora de competição. Já falámos dos manos Coen em abertura oficial, mas há também a mais recente joint de Spike Lee, Chi-raq, recriação da Lisístrata de Aristófanes nos territórios de gangues de Chicago que tanta tinta fez correr nos EUA e já é considerada a sua melhor obra em anos. Na paralela Berlinale Special, recebem-se Michael Moore e o seu documentário sobre as diferenças entre a sociedade americana e europeia, Where to Invade Next; Don Cheadle a contar a vida de Miles Davis na sua estreia por trás da câmara, Miles Ahead; e Cynthia Nixon a encarnar a poetisa Emily Dickinson em A Quiet Passion, do britânico Terence Davies (Vozes Distantes, Vidas Suspensas). E ainda há Gérard Depardieu a surgir em dose dupla e repetente: reencontra os realizadores de Mammuth, a dupla Gustave Kervern e Benoît Délépine, para Saint Amour (fora de concurso), e Guillaume Nicloux, com quem rodou o ano passado Valley of Love, para The End (Forum).

Até do lado mais radical do Forum a escolha é de luxo: o iconoclasta americano radicado em França Eugène Green (Le fils de Joseph, com Mathieu Amalric); o documentarista austríaco Nikolaus Geyrhalter (Homo Sapiens, sobre estruturas abandonadas); o israelita Avi Mograbi (Between Fences, sobre o limbo dos asilados da Eritreia em Israel); e o chinês Wang Bing (Ta'ang, sobre os migrantes da etnia Ta'ang de Myanmar). Na Berlinale Classics (clássicos em cópia nova, objecto de restauro), há Fritz Lang (A Morte Cansada), John Huston (Cidade Viscosa), Hou Hsiao-Hsien (Daughter of the Nile) e Yasujiro Ozu (Early Summer).

Por onde se quiser ver, parece haver qualquer coisa a mudar na Berlinale. A ver se os filmes confirmam ou desmentem, a partir desta quinta-feira.  

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