Índios em Lisboa, ou o começo de outra história

Aquilo que os brancos há séculos se habituaram a guardar em arquivos, antes de papel, hoje digitais, os ameríndios guardam na memória. Por isso Kopenawa diz que os brancos têm “a cabeça cheia de esquecimento”.

1. Ali entre o Intendente e o Martim Moniz, onde Lisboa é menos branca do que nunca, há uma presença rara até Abril. O Arquivo Fotográfico Municipal acolhe um vislumbre do trabalho monumental de Claudia Andujar com os índios yanomami. Não é igual ver estas fotografias em qualquer outra parte do mundo e em Lisboa. E, de algum modo, este tempo sombrio do mundo talvez seja a altura para começar, enfim, outra história. Uma história em que os índios serão brancos quando os brancos forem índios.

2. Os yanomami são um povo de caçadores-recolectores e agricultores que habitam um pedaço da floresta tropical da Amazónia com cerca de 230 mil quilómetros quadrados, entre o sul da Venezuela e o noroeste do Brasil. Para dar uma ideia da escala, Portugal não chega a 100 mil quilómetros quadrados, mais ou menos a área dos yanomamis só em território brasileiro. No Brasil, estão identificados pouco mais de 20 mil , divididos em 260 comunidades. Os primeiros contactos esporádicos que tiveram com os brancos, missionários católicos e evangélicos, aconteceram há cem anos. Esse embate trouxe as primeiras epidemias que os começaram a abater. Nas décadas seguintes vieram as aberturas de estradas, os milhares de garimpeiros das corridas ao ouro, a razia da indústria mineradora. O céu dos deuses encheu-se de fumo de máquinas voadoras, as árvores desapareciam a grande velocidade, a água tornou-se venenosa, os índios morriam de sarampo, ficavam paralíticos. Foi um fim do mundo, do ponto de vista de quem há séculos morava na floresta, da floresta, com a floresta.

3. Em 1955, uma jovem chamada Claudine Haas radicou-se em São Paulo. Nascida em Neuchâtel, era filha de mãe suíça protestante e pai judeu húngaro. A família do pai fora levada para campos de concentração nazis, ela fugira com a mãe. Morara um tempo em Nova Iorque e depois veio para o Brasil, onde se dedicou à fotografia, assinando Claudia Andujar. Em 1972 começou a trabalhar com os yanomami. E assim foi ao longo dos 40 anos seguintes: fotografou as casas, a relação com a terra, os rituais religiosos xamânicos; testemunhou os conflitos causados pela invasão dos brancos; fez retratos individuais dos indígenas para os registos de vacinação. Essa longa relação está documentada em cerca de 10 mil fotografias. Em 2015, um dos maiores acervos de arte contemporânea da América Latina, Inhotim, inaugurou um pavilhão para alojar uma parte desse trabalho, 500 imagens. Claudia trabalhou com Inhotim durante cinco anos na selecção e montagem do que ficaria exposto. E foi a partir desse espólio que foi feita uma selecção para Lisboa — Capital Ibero-americana da Cultura. A portuguesa Marta Mestre (que desde há um ano estava como curadora em Inhotim, e acaba de se desligar da instituição) veio montar a mostra: “Um pequeno mas contundente recorte” que significa “reorganizar novamente os sentidos destas imagens, especialmente porque estamos em território português”, salienta. “Imagens de longa resistência e pivots da história.”

4. Quarenta anos de relação é uma escolha de vida. “Minha fotografia é marcada pelo meu passado”, resumiu Claudia Andujar num depoimento sobre o seu trabalho. “Um passado de guerra, um passado de minorias. Isso é algo que não só me preocupa, mas me perturba. É parte da minha vida. Me interesso muita pela questão da justiça e das minorias que estão tentando se afirmar no mundo, mas se deparam sempre com um dominador que procura apará-las.” Sem Claudia, os yanomami mais dificilmente seriam rostos, corpos, figuras de um universo, uma cosmogonia, uma herança complexa. Apagar-se-iam numa abstracção, facilitando o esquecimento de que é feita a cabeça dos brancos, aqueles que perderam a prática da memória, passada de geração em geração.

5. Entre os yanomami fotografados por Claudia está Davi Kopenawa, um xamã que se tornou uma voz internacional não apenas do seu povo mas da floresta amazónica. Voz ao vivo, e em papel, a partir do momento em que saiu o livro que ele fez a meias com o antropólogo francês Bruce Albert, A Queda do Céu (edição original francesa, excelente tradução brasileira na Companhia das Letras). A entrega de Albert aos yanomami é semelhante à de Claudia: 40 anos de relação. Talvez só de um “pacto etnográfico” como este, talvez único na antropologia, pudesse resultar um livro tão único como A Queda do Céu. Porque não existirá outro em que possamos ter acesso directo, aprofundado, às palavras, à visão, à cosmogonia, à leitura, literalmente ao desenho do mundo de um xamã indígena que se dispôs a sair da sua zona de conforto, a floresta, para atravessar o mundo hostil, assustador, das cidades dos brancos, e falar com eles.

6. Aquilo que os brancos há séculos se habituaram a guardar em arquivos, antes de papel, hoje digitais, os ameríndios guardam na memória. Por isso Kopenawa diz que os brancos têm “a cabeça cheia de esquecimento”. Milhões de pessoas, milhares de línguas, todo um extermínio que os brancos enterraram numa nuvem, até ao ponto em que estamos, esse ponto a que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, no prefácio deste livro, chama “o fim de uma história, aquela contada pelo Ocidente”. O que as palavras de Kopenawa fazem é iniciar essa outra história possível: desde o ponto de vista da criança yanomami que ele era quando pela primeira vez viu brancos, “o povo da mercadoria”. Ele conta: “Minha mãe me fez agachar ao seu lado e depois me cobriu com o grande cesto de cipó que usava para carregar lenha. Eu estava apavorado, mas ela conseguiu me acalmar, me dizendo baixinho: ‘Não tenha medo, os brancos não vão vê-lo! Só fique quieto!’ Uma vez protegido dos olhares me senti um pouco mais seguro. Então fiquei encolhido, em silêncio, observando o grupo de visitantes brancos que entrava em nossa casa através da malha da cesta. Achava-os de uma feiúra terrível e meu coração batia forte no peito.” Uma estranheza não muito longínqua da que terão sentido os índios nas costas do Brasil, quando viram desembarcar os primeiros brancos. Já na segunda metade do século XX, Kopenawa via-os como fantasmas de fugir: “Tinham uma aparência horrível. Eram feios e peludos. Alguns eram de uma brancura assustadora. Perguntava a mim mesmo o que podiam ser seus sapatos, relógios e óculos. Esforçava-me por prestar atenção, tentando compreender suas palavras, mas não adiantava nada. Pareciam barulhos soltos! Além do mais, eles manipulavam sem parar vários tipos de coisas que me pareciam tão estranhas e assustadoras quanto eles próprios. (...) Eu tinha medo até da luz que saía de suas lanternas. Mas temia ainda mais o ronco de seus motores, as vozes de seus rádios e os estampidos de suas espingardas.” Eram os garimpeiros, aos milhares, que invadiam a terra yanomami. “Tive medo mas minha raiva foi mais forte.”

7. Quando cresceu, Kopenawa ouviu falar de uma estranha coisa, essa história de quem tinha descoberto aquela terra onde os seus antepassados já moravam. “Contam os brancos que um português disse ter descoberto o Brasil há muito tempo. Pensam mesmo, até hoje, que foi ele o primeiro a ver nossa terra. Mas esse é um pensamento cheio de esquecimento! Omama nos criou, com o céu e a floresta, lá onde os nossos ancestrais têm vivido desde sempre. Nossas palavras estão presentes nesta terra desde o primeiro tempo (...). [Os brancos] chegaram como visitantes! Porém logo depois de terem chegado não pararam mais de devastá-la e de retalhar sua imagem em pedaços, que começaram a repartir entre si.” Com tal cobiça, avisa, que ainda vão arrancar do solo as raízes do céu. É isso que o faz falar para aqueles que sempre querem mudar os outros porque não os reconhecem: “Só podemos nos tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em yanomami.”

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