Império serrano

Salve Estrela: venho de Lisboa, onde o escaravelho-vermelho comeu até a palmeira do Largo de São Miguel, conta o meu correspondente em Alfama, notícia velha, eu estaria longe, no Brasil. Então desembarco nestas encostas a rever penhas, pinheiros, e o que brilha, opulenta, a 700 metros de altitude, é uma copa de palmeira, em Gouveia, em Fevereiro.

2. Fevereiro tem Carnaval, o meu primeiro fora do Brasil nos últimos anos, salve Serrinha, morada da Império, minha escola, salve Ala dos Devotos que me acolheu sempre sem perguntas, além do limite das religiões, como diz o samba-enredo de 2015. Estamos com aquela diferença horária de aqui Inverno, aí Verão: enquanto o enredo sonha, a palmeira vê neve.

3. A minha amiga carioca que agora é minha vizinha em Lisboa pede que lhe mande fotos porque nunca viu neve, tal como o par de cariocas fugidos do Carnaval de 2015 que me hão-de dar boleia daqui a dias, no cimo da serra. Ficaremos assim a saber que já fomos todos vizinhos no Rio de Janeiro, eu, eles e a minha amiga. Não ter carta de condução dá nisto, a gente multiplica-se.

4. É uma semana antes do Carnaval, enterram-se as pernas na neve, mas frio nem tanto, ou será do meu recente estágio balcânico. O limpa-neves passou a varrer as estradas nacionais deixando as pequenas geladas. Uma das pequenas leva ao Observatório Meteorológico de onde sai esse clássico da temperatura: Penhas Douradas. Pouco menos de um quilómetro desde a estrada principal mas tão coberto de gelo que a observadora teve de deixar o carro na estrada principal e fazer o caminho a pé, com crampons nas botas para não cair, como lhe acontecera dias antes. Não sabemos de nada disto até lá chegarmos, eu e um amigo, sem crampons mas devagar, eu a achar que ainda há moradores no Observatório. Não neste meio de Fevereiro: esta observadora veio de Seia como todas as manhãs com a sua velha cadela. Não morde, diz mal nos vê, contente de ver gente, contentes ambas, aliás. Já moraram na casa da direita, ali cresceu a filha da observadora. Entramos na da esquerda, puxando com força a primeira porta de madeira, original, até a neve se soltar, revelando a segunda, uma adenda em alumínio. Lá dentro, tudo parado nos anos 1960, electrodomésticos do Estado Novo, fogão Oeiras, uma casa-fantasma, enferrujada, gelada, como a estrada que a ela conduz. Os limpa-neves já não limpam estradas pequenas, ainda que trabalhadores tenham de as percorrer para fazerem o seu trabalho, pelo menos esta, pelo menos este Carnaval. Qual será o plano do Estado? Haverá um plano? Haverá Estado?

5. Foi a minha primeira casa. Entretanto, mas certamente ainda no Estado Novo, planeei morar numa casa de cantoneiro como as que ainda existem na berma da estrada, hoje sem porta, queimadas por dentro. Talvez ainda venham a servir a resistência desta terceira guerra mundial. Todos às serras.

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6. Poucos lugares parecem ter mudado tão pouco nos últimos 45 anos como o cimo desta serra, ou antes, este cimo da serra. Depois, à medida que os dias passam, revela-se o deslocamento, a inflexão para uma espécie de digest do mundo, da Suíça à Mongólia. A velha pousada acaba de ser comprada pelos mesmos investidores que já haviam transformado o velho café num spa de montanha. E lá em baixo, junto à lagoa, ecoturismo de yurks.

7. Os cariocas que nunca tinham visto neve contam-nos que no dia anterior foram esquiar, nada menos. Bravos, intactos e tão gentis que alteram o percurso para nos deixarem no Sabugueiro, onde planeamos comer um cabrito não esturricado, ao contrário do cabrito do Nova Capela, um daqueles equívocos que fazem do Rio o que o Rio é. Eles seguem com queijos para Lisboa e nós entramos no tasco de um velho serrano, escuro como um preto, diz ele mesmo, porque a neve queima igual ao mar, quando se lá anda. Aprendo então que nas longas noites de invernia um homem faz o dominó com a mulher, e se vem de longe, com falta de há muito, logo ali no canto da lenha. Parece que isso não mudou, pelo menos neste tasco, mesmo que já não haja canto da lenha. Quanto ao cabrito, fiquem sabendo que à beira da ponte, aqui no Sabugueiro, só ao fim-de-semana, e ainda vamos em sexta-feira, pelo que aparelhamos uma chanfana a um bacalhau. Não sei se a isto se pode também chamar dominó, mas dá uma abada ao Nova Capela, mesmo sem cabrito.

8. Além do jogo, dominó, para mim, era só aquela fantasia daquelas damas naqueles romances com bailes de máscaras, algures antes da primeira guerra mundial.

9. Chovia quando acabámos de almoçar no Sabugueiro, e ao terceiro carro, o que levou um minuto, apanhámos boleia de uns convertidos à Beira Interior que não hesitaram em desmontar um dos bancos de criança no banco de trás. Deixaram-nos na estação de Seia, onde apanhámos um autocarro para Lisboa, daqueles onde um par de auscultadores salva a noite e a vida.

10. À falta de um comboio que desse para ler, A Morte Sem Mestre de Herberto Helder fez assim toda a viagem recém-liberto do celofane, como um animal de Inverno que acaba de hibernar. Só o abri ao voltar a Lisboa: silêncio após todo o ruído para então rebentar: granada de um só, de uma só vez.

11. Gosto de dois pontos, repetidos até na mesma frase, e também sempre achei que as histórias de grupo acabam mal. A nossa história é contrariar essa tendência.

12. No dia seguinte, em Lisboa, tenho o Carnaval à porta, acho que sai mesmo daqui um bloco, tudo brasileiros, batucando. Entretanto, no desfile carioca das escolas da segunda divisão, a Império Serrano fica em terceiro, portanto mais uma vez não sobe, mas que nada para um devoto. Vitória é o fim, só a luta continua.

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