Hugo

O meu afilhado, e primeiro sobrinho, faz vinte e cinco anos. Subitamente, estou atónito. O crescimento dos miúdos é o mais rigoroso sistema de medição. Enquanto cumprem as suas etapas e amadurecem, percebemos bem em que estagnamos nós, o que seguimos adiando, mal lúcidos acerca do tempo a passar. Nós, os quarentões, estamos atirados irremediavelmente para o último instante da juventude. Somos deprimentes a lembrar o Kurt Cobain. Santa Maria. Depois dele já apareceu e desapareceu a Amy Winehouse. A minha geração está definitivamente aposentada para a comoção do mundo.

Claro que faz sentido. Damos a vez aos miúdos, incapazes de aceitar que já não são miúdos. Muito recomeça neles. Procuramos passar-lhes todos os sonhos, como se o que esperamos do mundo possa ser uma forma de melhor juízo. Importa pouco. Eles vão escolher com o mesmo à deriva com que escolhemos nós. O que nos custa é que possam adiar-se como nos adiámos nós.

Afinal, a vida é fazer ou não viver. Quem muito fica à espera menos vive. Esperar tem de ser só em doses razoáveis. O cerne da experiência de existir tem de ser a acção. Ajo logo existo.

O meu sobrinho, a picar a pedra da crise, ainda não emigrou. Mas imagino que posso contar pelos dedos o tempo que faltará para isso. Não é nem bom que fique por aqui a assistir à moribunda gestão das coisas que sobram. Os miúdos de vinte e cinco anos precisam de olhar em redor e perspectivar oportunidades e até a felicidade. O país que lhes mostramos não se compadece com idades começadoras nem com expectativas, muito menos com felicidades.

Ter um aniversário em Fevereiro implica lidar com o frio antipático do Inverno. As prendas são todas cachecóis e meias grossas, casacos com gola de pêlo e luvas. Parece que a festa é apenas uma garantia de sobrevivência e não uma celebração mais despreocupada, menos atemorizada. No entanto, o meu sobrinho faz vinte e cinco anos e regozijamos. Algumas coisas têm um fogo próprio. Uma combustão interior que intervala os invernos e todas as demais exigências.

Quando o Hugo nasceu, eu ainda na universidade, lembro de pensar que lhe ofereceria livros e discos de boa música e certamente seria fácil convencê-lo da qualidade do que gostava eu. Haveria de ser habituado ao melhor do que levei tanto tempo a descobrir. Contudo, somos todos um resultado à revelia, por mais afecto e maior cuidado, cada um define para si uma identidade irrepetível. Nós, os já velhos, temos sempre a sensação de que algo se desperdiçou, mas não é verdade. A definição de identidade é a grande oportunidade. A sua mais espontânea comparência é uma oferta ao mundo de um ser genuíno, novo. Nessa altura, nós, os já velhos e mal convencidos, podemos aprender com os mais jovens, descobridores do que não nos competiu descobrir.

Pudesse eu ter aprendido com o meu sobrinho se houvéssemos nascido contrários no tempo. Ele primeiro e eu depois. Talvez me tivesse apressado em algumas fugas e autonomias, talvez tivesse lutado por uma bolsa de estudos em Itália, como tanto quis, talvez tivesse namorado com aquela mesma cachopa de Braga que era perfeitinha. O mundo ao contrário, afinal, mesmo que sem discos da Billie Holiday ou livros do Herberto Helder pode ser mais equilibrado. A arte, claro, aspira à harmonia mas o que consegue é mais semelhante ao tormento. Desarruma tudo e cria uma incompletude que já não se cura.

Aprendo agora que a grande arte é a da capacidade de se ser boa gente num lugar de magoados. Sendo que todos nos magoamos, o desafio é não corromper o belo ímpeto da benignidade. Aos vinte e cinco anos é o que mais se define no meu sobrinho. No atabalhoado que é a juventude, e a vida é para sempre um atabalhoado, o que prepondera no Hugo é a decência de sentimentos. Isso, no meu coração e no da família inteira, é uma lareira acesa contra o frio horroroso deste Inverno. Como vos dizia acima.     

Sugerir correcção
Ler 1 comentários