Hieroglyphic Being: o ex-prostituto mais respeitado da música actual

Entre esta quinta-feira e domingo, no Barreiro, acontece o Out.Fest, o festival de músicas exploratórias, de onde se destacam os japoneses Acid Mothers Temple, o saxofonista Evan Parker ou o americano Hieroglyphic Being, figura reverenciada tão próxima do jazz como da música de dança.

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Não é propriamente um novato, mas aos 42 anos o músico americano Jamal Moss, mais conhecido por Hieroglyphic Being, está a passar pela fase mais revitalizante da sua carreira. Entre os muitos discos lançados nos últimos tempos destaca-se o álbum colaborativo com J.I.T.U.Ahn-Sahm-Buhl, We Are Not The First, navegando pelas margens mais desprendidas do jazz na companhia do líder da Sun Ra Arkestra, Marshall Allen, ou o álbum deste ano The Disco’s Imhotep, lançado pela conhecida editora inglesa Ninja Tune, situando-o na música house mais expressionista.

A boa notícia é que Jamal vai estar por estes dias no Barreiro, sendo um dos destaques do OutFest, o festival internacional de música exploratória que ao longo de treze anos foi ganhando identidade, tendo na actualidade credibilidade e culto nacional e internacional. Entre esta quinta-feira e domingo diversos espaços da cidade vão receber nomes credíveis dos mais diversos géneros, que se distinguem pela forma incomum como olham para as diferentes matérias musicais ao seu dispor. É o caso de Jamal. Esta quinta-feira oferecerá um concerto no Velvet Be Jazz Club, ao lado do histórico do jazz Evan Parker e de Orphy Robinson e Yaw Tembé, durante o qual a improvisação jazz será cruzada com fontes electrónicas, e no sábado actuará a solo no espaço ADAO, no seu registo digital mais dançante.

Com um percurso de duas décadas é um filho de Chicago, tendo entrado pela primeira vez num clube de dança aos 12 anos pela mão do pioneiro da música house Ron Hardy. A sua discografia é prolífica, sendo capaz de lançar vários álbuns por ano, cruzando informação artística e humana entre linguagens como o house, tecno, electrónica abstracta ou o jazz mais livre.  Fá-lo com grande à vontade, a mesma que lhe permite ser hoje tão enaltecido nas pistas de dança mais exigentes como nos museus de arte contemporânea, ao mesmo tempo que gere a editora Mathematics.

Mas nem sempre foi assim. Numa entrevista ao The Guardian em Agosto confessava que havia tido uma vida difícil, tendo sido abandonado pela mãe e adoptado por uma família religiosa aos 3 anos, da qual começou a escapar para os clubes de dança aos 12, aproximando-se da comunidade da música de dança, mas acabando na adolescência por terminar nas ruas como sem-abrigo. Foi aí que começou a vender o corpo, prostituindo-se e recebendo avultadas somas de dinheiro de mulheres brancas ricas.  

Mas não desistiu, acabando por estudar antropologia na universidade, ao mesmo tempo que começava a criar música de dança inspirado pelo facto de habitar na histórica cidade de Chicago onde germinou o som house. Na actualidade diz que foi a música que o salvou permitindo-lhe exorcizar todos os seus fantasmas, não só pessoais, como sociais, nunca dissociando a sua actividade de um posicionamento sociopolítico crítico e activista.

Foi o facto de se ter sentido integrado na comunidade local da música house que lhe permitiu sair de um certo ambiente marginal, sendo por isso hoje um dos maiores defensores da transmissão de valores propagados pela música de dança nos seus primórdios. “Quando comecei a tomar contacto com esta cultura percebi que era possível ter, debaixo do mesmo tecto, negros, brancos ou gays e isso foi uma revelação para mim”, afirmava recentemente alguém que olha para a sua actividade como um eterno contínuo, como se fosse o depositário da memória de Alice Coltrane, Sun Ra ou Herbie Hancock, tudo figuras do jazz que reverencia.

É esta figura singular do cenário música actual que constituirá um dos grandes destaques do OutFest, o festival que ao longo dos anos tem programado uma série de nomes (Oneohtrix Point Never, Panda Bear, Sonic Boom, The Fall, RED Trio, Fennesz, Faust, Golden Teacher, Vladislav Dealy, Matana Roberts ou Peter Evans) que independentemente das diferentes áreas estéticas onde se movimentam apresentam sempre obra interpeladora e desafiante. Exactamente como Hieroglyphic Being.

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