Quando Helen Macdonald quis ser um açor

Depois da morte do pai, a historiadora e falcoeira perdeu-se num lugar negro. Escreveu um livro de memórias, A de Açor e diz: "É tudo verdade mas aquela mulher já não sou eu".

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Helen ficou obcecada por tentar ser como Mabel, o pássaro predador, e chegou mesmo a sentir-se como ela ENRIC VIVES-RUBIO

Vê-se nos olhos que ainda está entusiasmada. No dia anterior à conversa com o Ípsilon, num hotel de Lisboa, fez uma visita guiada ao estuário do Tejo onde ficou maravilhada com os pássaros que viu, entre os quais flamingos. “Ao sair de casa em Inglaterra ainda pensei trazer a câmara fotográfica, mas achei que seria só uma visita às margens do rio. Se ao menos a tivesse trazido… Foi um dos sítios mais bonitos onde já estive e tão cheio de vida, com pássaros que não vemos em Inglaterra!”

A autora de A de Açor (ed. Lua de Papel) - obra vencedora do Prémio Samuel Johnson de não-ficção e do prémio Costa Book of The Year 2014 e cujos direitos de adaptação ao cinema foram comprados pela actriz Lena Headey (a Cersei Lannister de A Guerra dos Tronos) - sabe que uma das maneiras de conhecermos melhor os lugares onde vivemos é através da “vida não-humana que nos rodeia”.

Há dias conversava sobre a natureza com alguém que lhe dizia que estamos sujeitos a muitas distracções e que concluía: com o Facebook e o Twitter ninguém está interessado na vida animal. A escritora falcoeira, membro do Departamento de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Cambridge, contrariou essa opinião: se fossem ao Twitter, argumentou, veriam partilhas de fotografias com plantas e animais e encontrariam pessoas a fazerem perguntas e a receberem respostas.

As redes sociais são “uma maneira maravilhosa de se partilharem experiências do mundo natural e de o conhecer melhor”, considera a autora deste livro de memórias onde conta como depois da morte repentina do pai, o fotógrafo Alisdair Macdonald (1940-2007), comprou um açor a que chamou Mabel para tentar sobreviver à dor e ao luto. “Muitos dos leitores de A de Açor não se interessam por pássaros ou pela vida animal, foram lê-lo porque ganhou prémios ou por causa de ser uma história de luto – que é universal ”, explica Helen Macdonald. “Mas a Mabel é a heroína deste livro, eu sou só a fatia de bolo ao lado. Os açores são criaturas espantosas e as pessoas apaixonam-se por ela. Mabel é uma personagem maravilhosa.”

O espelho do luto
No seu livro, a escritora de 45 anos explica que o açor muda de cor com a mudança das penas. Mabel passou de tons alaranjados para acinzentados e, nas fotos, nem parece o mesmo pássaro. “É interessante porque ela tem a mesma cara, apesar de a cor das penas ter mudado. A proporção entre os olhos e o bico, para mim é tão reconhecível como quando olhamos para uma pessoa”, explica.

“Tenho saudades dela" - Mabel morreu há dois anos com uma infecção súbita. "Tive de a emprestar a um amigo porque estava numa situação em que já não a podia ter, mudei-me para casa da minha mãe que é rodeada de terrenos onde se pratica a caça aos faisões e se paga muito por isso, não podia soltá-la naquele lugar e deixá-la voar. Sonho muitas vezes com ela. Sonho comigo e com ela, debaixo de sol, numa colina. Mabel está sempre presente na minha cabeça.”

O açor morreu quando Helen estava a escrever esta obra que já foi publicado em mais de 20 países. “Perguntam-me muitas vezes se escrevê-lo foi uma experiência terapêutica. Enquanto escrevia não achei que o fosse. Mas depois de bater nas teclas para escrever a última frase do livro, senti-me tonta, mesmo doente. Agarrei-me à cadeira e percebi o que aquilo era. Era uma maneira de dizer adeus, tinha terminado. O livro é realmente uma forma de dizer adeus ao meu pai, a Mabel e à pessoa que fui quando vivi tudo aquilo. Já não sou aquela pessoa. A mulher do livro é uma personagem. É tudo verdade mas aquela mulher já não sou eu”, afirma.

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De alguma maneira Mabel ensinou Helen a sentir-se mais humana, pois ao treiná-la confrontou-se também com a animalidade dentro de nós. “Naquela época não queria ser eu. Quando o meu pai morreu deixei de perceber o mundo. Éramos muito amigos e eu não tinha uma rede de suporte à volta. Enfim, tinha amigos mas vivia sozinha e não tinha um trabalho fixo. Por isso fugi, comecei a identificar-me com o açor, queria ser como a Mabel. A raiva e o ódio fazem parte do luto e eu queria viver no mundo selvagem, não queria fazer de nada humano”.

Helen ficou obcecada por tentar ser como aquele pássaro predador e chegou mesmo a sentir-se como ele. “É muito estranho estar a falar disto agora, parece-me uma coisa louca mas era o que sentia na altura. Depois, quando recuperei - fui medicada e tomei antidepressivos - vi que tinha feito interpretações erróneas acerca do mundo. Tinha usado a Mabel como um espelho do meu luto.”

Foi nessa altura, em que percebeu que tinha usado o açor como um espelho para as suas emoções humanas, que Helen compreendeu que a coisa mais interessante na sua relação com Mabel é que ela não era humana. “Se nos associarmos com mentes que não têm nada a ver com a nossa, enriquecemos aquilo que somos. Não acontece só com açores mas com outras pessoas. Uma das lições deste meu livro é sobre amar a diferença, amar coisas que não são como nós. Isso é muito importante. Na minha imaginação, ter pretendido ser um açor, fez-me perceber melhor o que significa ser-se humano”, explica.  

Por outro lado, quando se identificava com o pássaro, vivia como se só existisse o presente – sem passado nem futuro - e isso fazia-a sentir-se segura. Mais tarde percebeu que era um erro de análise: o que faz de nós humanos é a História. Se a ignorarmos, ignoramos temas políticos importantes, como os ambientais ou o alerta para o apocalipse ecológico em que vivemos.

“Estou muito entusiasmada por ter chegado a Portugal no dia em que o Governo caiu e por ter assistido a isso. É um momento que tem tanto de assustador como de entusiasmante. Não podemos pretender viver num mundo sem política porque não somos pássaros”, diz a rir-se.

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ENRIC VIVES-RUBIO

Enquanto escrevia este livro de memórias sobre o seu dia-a-dia com uma ave de rapina e que paralelamente conta a biografia do escritor britânico T. H. White (1906 – 1964), que praticava a arte da falcoaria, que treinou um açor e escreveu um livro sobre essa experiência (The Goshawk), Helen Macdonald nunca pensou engendrar truques para agarrar o leitor. Desde o princípio que sabia que ia escrever sobre a vida do autor de O rei que foi e um dia será (ed. Europa América), mas não pensava dar-lhe tanto espaço no livro.

Quando foi ao Harry Ransom Center, na Universidade de Austin, no Texas, investigar os arquivos do escritor britânico encontrou caixas com cartas, diários e manuscritos inéditos. Enquanto estava a folhear essas páginas dos diários sentiu-se caçada pelo escritor e por aquele universo. Além da enorme sinceridade daquelas páginas – sobre a sua infância terrível e o que sofreu por ser homossexual naquela época -, viam-se marcas de lágrimas nos papéis e percebia-se que alguns tinham sido escritos em momentos de embriaguez pela caligrafia escangalhada. Foi depois disso que Helen entendeu que teria de dar mais espaço a T. H. White em A de Açor. “Este livro é também sobre olharmos o mundo através dos olhos dos outros, não só através dos olhos do açor mas também através dos olhos de T. H.White.”

Pode parecer egoísta mas enquanto estava a escrever tinha em mente um leitor benevolente e não fez nada para que o livro fosse mais popular. “Havia uma história que queria contar e era complicado fazê-lo por causa de todas as vertentes. Era uma história antiga sobre alguém que se perdia, entrava num lugar negro e conseguia regressar. Era com essa história que eu estava preocupada. Quando acabei o livro, estava convencida que ninguém ia querer lê-lo porque é muito estranho. Mistura géneros – memória, biografia, vida animal – ao mesmo tempo que é muito pessoal e tem muita linguagem técnica [de falcoaria]. Fiquei surpreendidíssima com o sucesso, nunca pensei que fosse tão bem recebido”.

A seguir à morte do pai, Helen começou a escrever um diário porque sentia que tudo se tinha quebrado e essa era uma forma de tentar juntar e colar todos os pedaços e havia um açor nele. Mas para a escrita do livro não se apoiou nesses velhos diários. “Não precisei porque aquele ano está muito presente na minha memória. Uma das possibilidades é isso ser uma consequência do choque e da dor do luto. Lembro-me de tudo detalhadamente. Tenho péssima memória, não sei o que fiz a semana passada, mas esse ano é quase como se fosse uma coisa cinematográfica. Lembro-me de estar sentada debaixo de uma árvore com a chuva a cair, lembro-me das pingas de água, do formato das folhas. É tudo muito visual.”

Uma das coisas boas de se ser um escritor, principalmente se o livro tem sucesso, é que se passa de um extremo ao outro. Depois de ter estado meses isolada, à secretária, a escrever, a fumar, a comer junk food e a chorar, está agora, há 15 meses, a viajar sem parar, a falar com pessoas. “Tenho passado bons momentos. Encontrei leitores que querem falar comigo sobre as suas perdas, as suas dores. Tem sido uma experiência forte e emotiva. Há leitores que tiveram perdas e dores de uma magnitude muito maior do que a da morte de um pai, perderam companheiros de toda a vida e filhos. Quando estamos de luto é difícil falar com outras pessoas porque têm medo de nós, como se fosse contagioso. Os livros que abordam esse tema são refúgios para quem está a sofrer. Não esperava que o meu livro tivesse esse significado, mas teve e tem sido extraordinário.”

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