Harper Lee, afinal havia outro

Texto da escritora norte-americana para uma revista do FBI será republicado no próximo mês.

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AFP/Mandel NGAN

O biógrafo da escritora Harper Lee, que até ao ano passado era autora de um livro só, pensa ter descoberto outro texto anterior a Mataram a Cotovia, o famoso romance de 1960 sobre a segregação racial no sul dos Estados Unidos e considerado um clássico da literatura norte-americana. 

Charles J. Shields localizou numa revista para profissionais do FBI, a Grapevine, um artigo sobre um quádruplo homicídio muito mediático na época. A peça jornalística, escrita em Março de 1960, aparece poucos meses antes de Harper Lee ter publicado Mataram a Cotovia. 

Já no ano passado fora descoberto o manuscrito de uma alegada sequela de Mataram a Cotovia, publicada em 2015 com o título Go Set a Watchman (Vai e Põe Uma Sentinela, na edição da Presença), uma vez que este segundo romance terá sido escrito anteriormente, em meados da década de 50. Há quem defenda que não se trata de uma obra independente e foi apenas uma das infindáveis versões trabalhadas por Harper Lee até chegar à obra-prima. 

O novo texto, que não está assinado, é sobre o assassinato, numa quinta no Kansas, de Herb e Bonnie Clutter e os seus filhos adolescentes. Sabia-se que Harper Lee tinha acompanhado em 1959 o seu amigo de infância Truman Capote ao Kansas, numa investigação que viria a dar origem a In Cold Blood (A Sangue Frio), obra fundadora do Novo Jornalismo com a narrativa jornalística a misturar-se com a literatura, mas não até que ponto Harper Lee tinha estado envolvida na pesquisa de uma maneira autónoma. 

O livro A Sangue Frio, em que Capote relata o brutal homicídio da família Clutter, só viria a ser publicado em 1966, já Harper Lee era uma estrela literária, embora uma série de reportagens de Capote tivesse aparecido anteriormente na revista New Yorker. O relacionamento entre os dois amigos é, aliás, relatado no filme Capote, de Bennett Miller, com Philip Seymour Hoffman no papel do romancista e Catherine Keener no de Harper Lee. 

Segundo o jornal The Guardian, que falou com o biógrafo, os dois amigos entrevistaram o detective Alvin Dewey, do Kansas Bureau of Investigation, material que Capote também usou em A Sangue Frio, livro em que apenas atribui a Harper Lee o papel de “assistente de investigação”. 

No artigo, Lee descreve “o mais extraordinário caso de homicídio na história do estado” e conta que as vítimas - “líderes da vida da comunidade” e “metodistas respeitados” da cidade de Holcomb – “tinham pés e mãos atados e foram alvejados de perto”, tendo “a garganta de Clutter sido cortada”. O jornal britânico The Guardian continua o relato feito pela escritora: “O papel do [detective] Dewey era duplamente difícil; o falecido Herbert Clutter era um amigo pessoal bastante próximo […]. As pistas que Dewey e os seus colegas trabalharam no início eram escassas [sic]. Os assassinos levaram consigo a arma e as balas usadas para matar a família; a fita adesiva utilizada para amordaçar três das vítimas podia ter sido comprada em qualquer lugar […]. Mas, na cave da caldeira onde estava o corpo de Clutter, os investigadores encontraram uma pegada claramente marcada a sangue.” E mais à frente o artigo da escritora conta o desfecho do caso, com os dois homens a confessarem os assassinatos para “ganharem uma quantia entre os 40 e os 50 dólares”.

O biógrafo encontrou o artigo numa revisão que está a fazer da sua biografia da escritora de 2006, intitulada Mockingbird: a Portrait of Harper Lee, e que será novamente editada esta semana nos Estados Unidos. Shields estava à procura de “qualquer pista”, como descreveu ao Guardian. Foi ao folhear ao acaso os jornais do Kansas que encontrou no Garden City Telegram uma amiga de Harper Lee, Dolores Hope, a falar de um artigo, a ser publicado na Grapevine, com a escritora como autora.

“É um longo artigo elogioso sobre o grande trabalho que o investigador Alvin Dewey está a fazer no caso e como Truman vai revelar tudo. É um acto generoso em relação a um amigo”, afirma o biógrafo numa entrevista ao New York Times. Shields acrescenta que Harper Lee tinha uma paixoneta pelo detective, como se pode constatar na sua correspondência. 

Quanto ao artigo, só ela o podia ter escrito, defende o biógrafo, uma vez que está cheio de informação que mais tarde iria aparecer em A Sangue Frio. E voltamos ao jornal de Kansas e à coluna de Dolores Hope: “Nelle Harper Lee, a jovem escritora que veio até Garden City com Truman Capote para juntar material para um artigo para uma revista nova-iorquina sobre o caso Clutter, escreveu a peça. O primeiro romance de Miss Harper está pronto a publicar […] na Primavera e relatos antecipados dizem que está destinado ao sucesso.”

Mataram a Cotovia ganhou o prémio Pulitzer em 1961 e um ano depois foi adaptado ao cinema num filme de Robert Mulligan com Gregory Peck no papel do advogado Atticus Finch, interpretação que lhe valeu um Óscar.

 

Harper Lee já tinha publicado várias histórias em revistas quando saiu Mataram a Cotovia, à semelhança do que se passou com o caso Clutter e a Grapevine, que vai republicar o artigo no número do próximo mês com uma introdução de Shields.

Depois de Mataram a Cotovia a escritora ficou 55 anos sem escrever um novo romance, havendo notícias de que andou às voltas, sem sucesso, com um assassino em série no Alabama, à imagem de A Sangue Frio do seu amigo Capote. Em 2015, apareceria finalmente Go Set a Watchman, escrito antes de Mataram a Cotovia e que retoma as mesmas personagens 20 anos depois. Sobre o segundo romance, Shields diz que é "um importante documento cultural", um bom exemplo de como não fazer as coisas.

Parece que afinal Harper Lee pode ser uma escritora de vários artigos, mas continuará a ser, pelo menos para alguns, uma autora de um só livro que valha a pena ler. Lee morreu em Fevereiro deste ano sem se ter percebido qual era exactamente a sua opinião sobre o novo livro.

 

 

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