Há uma saída airosa para o Acordo Ortográfico?

Marcelo relançou a discussão em torno do Acordo Ortográfico (AO), mas ninguém antevê ainda o passo seguinte, e os adversários do AO dividem-se entre os que querem rasgá-lo e os que acham que é possível melhorá-lo.

Foto
MIGUEL MADEIRA/ARQUIVO

No dia da língua portuguesa e da cultura, comemorado esta quinta-feira em todos os Estados membros da CPLP, a discussão em torno do Acordo Ortográfico de 1990 (AO) está definitivamente reinstalada na sociedade portuguesa, e anuncia-se mesmo um primeiro foco de divergência entre o novo Presidente da República e o Governo de António Costa.

Em visita presidencial a Moçambique, de onde regressará no sábado, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou esta quarta-feira à RTP África que o facto de Angola e Moçambique não terem ratificado o AO constitui “uma oportunidade para repensar a matéria”. Já tinha dito aproximadamente o mesmo nas vésperas da sua partida para Moçambique, mas agora repetiu-o depois de o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, ter afirmado no dia anterior que Portugal “aguarda serenamente” a conclusão da ratificação do AO pelos membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que ainda não o fizeram, lembrando que se trata de uma convenção internacional que “já foi ratificada e está em vigor em Portugal e em mais três países”, ou seja, Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

O Presidente tem assumido uma posição pragmática, sem propriamente tomar posição substantiva sobre o AO, e argumentando apenas que há “Estados relevantes” que ainda não decidiram ratificá-lo e que faz sentido acompanhar a ponderação que está a ser feita nesses países – Angola e Moçambique – para avaliar se “há razão para reponderar” a sua aplicação em Portugal.

Como seria de esperar, a sua intervenção desagradou aos defensores do AO e foi entusiasticamente saudada pelos adversários do diploma, que após anos a verem as suas críticas ao Acordo Ortográfico serem ignoradas pelo Parlamento, por sucessivos governos e pelo anterior Presidente da República, registaram com satisfação que um órgão de soberania português viesse, com manifesta deliberação, colocar em cima da mesa a possibilidade de se repensar a aplicação do AO em Portugal.

Uma iniciativa que não deixa de surpreender, já que as posições de Marcelo em matéria de AO não têm sido isentas de oscilações. Em 1991 assinou um primeiro manifesto contra o acordo, mas em 2008 já parecia rendido ao argumentário político em favor do tratado e menorizava o seu impacto na língua. Após ter sido eleito, mas antes de tomar posse, publicou no Expresso um artigo de opinião na ortografia anterior ao AO, mas nunca tomou a iniciativa de reverter a aplicação da nova ortografia nos serviços da Presidência, introduzida pelo seu antecessor, Cavaco Silva.

Hesitações que não são incompatíveis com o argumento estritamente prático que Marcelo invocou para reavivar o debate: a sua convicção de que o AO redundou num falhanço diplomático para o qual é preciso encontrar solução.

Rasgar ou melhorar?

Qual pode ser essa solução é que “é a pergunta que todos fazem”, disse ao PÚBLICO o actual presidente da Academia de Ciências de Lisboa (ACL), Artur Anselmo, defendendo que “é preciso encontrarmos uma saída airosa, para bem de todos”. O filólogo é um declarado opositor do AO, mas pergunta-se: “É preferível rasgar o chamado acordo de 1990 ou tentar melhorá-lo?”. E “com o devido respeito por posições mais extremistas”, avisa que “é preciso ter cuidado, porque os problemas que decorrem do ensino da nova ortografia nas escolas ao longo dos últimos anos são gravíssimos”.

Embora descartando qualquer influência na iniciativa que o Presidente da República veio a tomar, Artur Anselmo desafiara-o publicamente a ouvir os especialistas da língua e a contribuir para “despiorar” um acordo que – afirmou ao PÚBLICO no início de Março – estipula “coisas incompreensíveis e inaceitáveis, que o senso comum não aceita, e que têm de ser corrigidas”.

Defendendo uma espécie de terceira via já sugerida em diversos momentos por outros protagonistas, como a ex-ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, o presidente da ACL acha que “tem havido muita excitação” em torno do AO, e que a discussão de problemas científicos exige algum silêncio. E o principal erro no processo, argumenta, foi justamente a politização de um debate que deveria ter sido apenas científico. “Fizeram dele uma questão política quando um senhor ministro de cujo nome agora não me lembro [o ministro da Cultura José António Pinto Ribeiro] resolveu tirar o esqueleto do armário e pegou numa resolução da Assembleia da República que estava esquecida há 20 anos e que ninguém fizera nada para aplicar e decidiu, como agora se diz, ‘implementá-la’”. O AO, resume, “entrou em vigor pela decisão despótica de um ministro, com o Presidente da República de então”, Cavaco Silva, “a engolir tudo e mais alguma coisa”.

Para lá de achar que “é um ultraje procurar impor uma norma ortográfica comum à portuguesa a países com a autonomia cultural do Brasil, Angola, Moçambique ou Cabo Verde”, Artur Anselmo, que tem ascendência portuguesa e brasileira, não duvida de que o objectivo é além do mais irrealizável, dado que “a chamada norma brasileira do português está a afastar-se cada vez mais do português europeu”, observa. “A diferença salta aos olhos de toda a gente, mas estes partidários de soluções utópicas e despóticas convivem mal com a diferença."

Enquanto presidente da ACL, onde o AO é uma questão que “não suscita unanimidade”, o filólogo acha que a Academia deve respeitar as opiniões dos vários académicos e não tomar posição, mas defende que esta deve “chamar a atenção, como tem feito, para a necessidade de se conseguir um mínimo consenso nacional, que só será possível pelo diálogo”. A proposta de Artur Anselmo é que a ACL acolha “um debate com representantes de instituições científicas, academias, universidades e associações relevantes”, mas sabe que “essa fase de concertação terá de partir de um consenso nacional sobre a sua necessidade”. E é aqui que a posição assumida por Marcelo Rebelo de Sousa pode vir dar um empurrão decisivo.

Falta uma política de língua

O principal obreiro do AO pelo lado do português, o linguista Malaca Casteleiro, já reagiu a este reacendimento da controvérsia em torno do AO, afirmando à Lusa que os atrasos na sua ratificação “correspondem aos ritmos democráticos de cada país” e que, em democracia, “quando há decisões, há sempre os contestatários dessas decisões”.

Ao Expresso, o linguista mostrara-se “surpreendido por ver o Presidente da República meter-se numa questão tão complexa”, sugerindo que a sua intervenção poderá prejudicar “o futuro da língua portuguesa no mundo”. Embora “muito apreensivo” com a possibilidade de se reabrir o debate, Malaca Casteleiro aceita que se venha a proceder a “acertos de conteúdo” no AO, mas preferia que os países ainda em falta ratificassem o tratado antes de se proceder a eventuais modificações.

Lembrando que Moçambique já elaborou o seu vocabulário ortográfico nacional, o que lhe parece um sinal de que virá a ratificar o acordo, mostrou-se convencido de que se Angola se visse isolada na sua posição “também acabaria por aderir”.

O linguista pode bem ter contribuído involuntariamente para levar Marcelo a tomar a iniciativa de discutir o AO, já que este dificilmente terá gostado de ler as declarações que Malaca Casteleiro prestou ao Diário de Notícias no início de Abril, afirmando que o novo Presidente tinha, no exercício das suas funções, de “cumprir a lei” e aplicar o AO. Afirmação aliás controversa, já que a resolução do Conselho de Ministros que impôs o acordo à administração pública não vinculará, segundo defendem vários juristas, órgãos de soberania como a Presidência da República e os tribunais. Um recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra vem afirmar isso mesmo.

Para Carlos Reis, um dos principais defensores do AO, “o que esperamos de um Presidente da República (PR) é que use a sua influência para acudir aos interesses do Estado”, e, “no tocante ao Acordo Ortográfico”, o professor e ensaísta duvida de que o “percurso equívoco” de Marcelo nesta matéria o coloque “em boa posição para o fazer”.

Reconhecendo que o Presidente tem “legitimidade para lançar um debate sobre o AO ou sobre qualquer outra matéria que interesse ao Estado”, Carlos Reis acrescenta que “ seria bom que concertasse as suas posições com o Governo, que nesta matéria tem competências executivas”.  

Sem excluir, como Malaca Casteleiro, que se possa melhorar o AO, até porque “nenhum acordo é perfeito”, como “a língua também o não é”, o especialista em Eça de Queirós defende que “a questão está em saber até onde deve ir-se, numa altura em que nas escolas o AO está em vigor sem sobressaltos que se conheçam, a esmagadora maioria dos órgãos de comunicação social e das editoras já o usam e o mesmo fazem todos os sectores do Estado e da administração pública”.

Seria “desejável”, diz, que Marcelo “tivesse a noção de que a sua intervenção, como presidente, não pode ser arrastada pelos seus gostos e intuições enquanto cidadão, nem pelos seus famosos afectos, que são estimáveis, mas nada mais do que isso”. E defendendo que o AO é “um instrumento de política de língua, entre outros mais, que infelizmente não se vêem”, Carlos Reis acha que o que “deveria preocupar o Presidente” é “saber quando teremos uma política de língua com visão estratégica, instrumentos e capacidade de envolvimento dos restantes países da CPLP”.

AO não vigora de jure

Do lado dos que defendem que este AO não é reformável está o jurista Ivo Miguel Barroso, que saúda “a posição corajosa” de Marcelo Rebelo de Sousa ao reabrir vias políticas que “estavam bloqueadas”.

Defendendo que “a esmagadora maioria da população portuguesa não se revê” neste acordo “mal feito” e que “existe um consenso alargado”, ainda que não unanimidade, “no sentido de revogar a vinculação” ao AO, Barroso lembra que “nunca foi feita uma discussão científica” do acordo “nas instituições estaduais” e que “os 25 pareceres pedidos em 2005, que eram no sentido da sua não ratificação, foram ignorados pelo Governo de então”.

E uma “grande reforma do Estado”, defende, “tem de ser bem fundamentada”, e não imposta “à força”, como foi feito através da “inconstitucionalíssima Resolução do Conselho de Ministros” de 2011.

Partilhando a posição do embaixador Carlos Fernandes, que no seu recente livro O Acordo Ortográfico de 1990 não está em vigor (Guerra e Paz, 2016) defende que o diploma pode estar a ser aplicado na prática, mas não está em vigor de jure, Ivo Miguel Barroso acha que o AO “é inconstitucional por várias razões”, e desde logo por contrariar o artigo da Constituição que proíbe o Estado de “programar a cultura e a educação segundo quaisquer directrizes estéticas, políticas ou ideológicas”. Mas considera que um dos aspectos mais graves, e mais obviamente inconstitucionais, do AO é “ter inventado palavras como ‘conceção’ e ‘receção’, inexistentes mesmo no Português do Brasil”.

É certo que Marcelo não tem poderes para revogar o AO em Portugal, e que uma reversão do acordo implicaria uma proposta da AR ou do Governo, com posterior aprovação no Parlamento e promulgação pelo Presidente da República. Mas Marcelo, como sublinha Barroso, desbloqueou as vias políticas, tornando mais difícil aos defensores do AO evitarem uma discussão que nunca chegou verdadeiramente a existir.

Sugerir correcção
Ler 112 comentários